sexta-feira, 17 de junho de 2011

Mato

Naquela manhã acordamos com uma torrente de latidos. Aproximaram-se furiosos, correndo em seu grupo e arfando dominados pela raiva trazida por um intruzo. Alerta vermelho. Concentrados na mata que circundava minha oca eles latiam obcecados para um ruído que, para nós, ainda projetava-se anônimo.

Aprendemos instintivamente a interpretar os barulhos da mata. Me foi ensinado o ler dos latidos dos cachorros. Os meses isolado na tribo nos me desenvolveram sentidos que nunca imaginaria ter. Minha audição ficou melhor. Escutava coisas ao longe. Ações se desenrolando. Sons que estavam por vir. Uma mistura de audição com sexto sentido que quase me enlouqueceu.

Mas naquela manhã eu acordei com os latidos. Eram claros como relâmpagos. Soando desesperados feito alarmes de carros; denunciavam a presença de um invasor ainda invisível.

Oculto, no escuro da mata, ele nos olhava incauto. Esperando pelo próximo movimento sabendo cabreiro que qualquer movimento poderia denunciar sua localização. Naquele momento uma confirmação visual seria redundante pois já sabíamos que ela estava lá. Apenas não sabíamos aonde.

Me levantei sem me mover muito. Prezei pela concentração dos cachorros. A leitura de seus latidos era assustadora até para os nativos mais experientes. Os respeitavam como se fossem membros da família. Eram considerados iguais perante os locais. Os cães eram uma extensão lógica daquela comunidade.

Um índio mais velho se aproximou de mim. Não nos dávamos muito bem mas aquele era obviamente um momento de trégua. Segurando uma espécie de lança, ele me explicou em uma palavra o que se escondia na mata. Senti em seu hálito o cheiro de medo. O alívio em saber que meu pânico era compartilhado por mais pessoas durou um segundo. O suficiente para perceber que corríamos um sério risco. Me senti menos covarde. Mas durou pouco.

Peguei meu arco pendurado na viga da oca como se fizesse diferença. Encaixei a bunda da minha mais perfeita flecha em sua corda e me concentrei em reduzir minha respiração. Queria evitar ser escutado pela fera. Instantaneamente farejei o bicho no mato. Um forte cheiro felino misturado com sangue. Detectei no ar partículas do inconfundível perfume do pânico. Tive vontade de correr.

Os cachorros começaram a ficar impacientes. Ameaçavam entrar no mato e depois voltavam com um arrependimento covarde, com seus rabos por baixo do corpo.

Moviam-se como se quisessem afugentar o invasor para pegá-lo novamente mais longe dali. Na verdade foram bem mais corajosos que eu. Meu maior desejo naquele momento era uma guarita, daquelas de vigia de rua. Com uma cadeira velha e um radinho de pilhas passando o futebol.

Ela ficou ao meu lado o tempo todo. Conseguia farejar a chuva há dias de distância (já contei isso). Empinava a ponta do nariz no ar e inspirava, como se fosse um bicho - e era mesmo. Dilatava as narinas e decifrava os elementos numa fração matemática. Identificava cada partícula como um sommelier interpreta um vinho.

Ela Percebia a mudança das marés pelo barulho das ondas. Mesmo longe da praia. Me guiava pelo mangue sem precisar da luz da lua com precisão, não me perdia na mata nem na mais escura das noites. Mas naquele momento ela apenas fareja a fera por trás do mato. Esse seria nosso último perigo juntos. No dia seguinte me lançaria ao mar. Voltaria à civilização em meu pequeno barco. Deixando para trás aquele enorme coleção de feras.