terça-feira, 19 de junho de 2012

Castaway (também sei ser piegas)





Tinha a proteção dos elementais na natureza. Abriam seu caminho pelo meio do mato, a olhavam em silêncio enquanto caminhava pela praia. Fechavam a mata para aqueles que a seguiam e desviavam rios e agitavam mares para os piratas obcecados por sua beleza.
Despertava inveja nas sereias no mar. Fazia os marinheiros mudarem de rota. Inspirava os índios em suas gravuras rupestres com seus cabelos negros como a chantagem. Saía para caçar com os felinos da mata. Dormia em cima das árvores para se acostumarem com seu cheiro. Puxou seus cacoetes e trejeitos para si.
Conseguia notar a vinda da chuva há dias de distância. Sentia micro gotas perfumarem as narinas olhando as nuvens subindo como cogumelos no horizonte. Sentia-se lasciva com isso. Cheiro de chuva que vinha do mar e ainda não havia chegado à terra. Água por vir. Promessa de mais. Ela sabia quando ia chover. O perfume da chuva a tornava fértil. Deixava seu rosto magro e seus cabelos mais lisos.
Andava descalça pela restinga. Seus pés não se feriam com espinhos nem conchas incrustadas nas pedras. Cortava caminho pelo meio da briga de feras. Pisava com delicadeza sobre animais peçonhentos e sua pele não se queimava muito no sol. Seus olhos negros enxergavam melhor no escuro. A guiava pela noite pelo caminho certo.
Naquela noite chegou bem alto na montanha, escoltada por lobos famintos. Uivando de fome e desejo, a entregaram em segurança em seu destino final. Salivando pelo canto da boca como se antecipassem uma refeição que nunca aconteceria. Hipnotizados pelo seu cio eles choravam de medo e desejo por dela.
Dispensou a companhia dos bichos com seus olhos de cachorra braba. Faziam barulho demais e ela já esta farta daquilo. Sentou-se sobre uma pedra e viu o barco chegar.
Viu sua pequena embarcação apontando no horizonte. A luz da lua Nova não a ajudou nem um pouco. Mas não precisava. Teve sua identidade confirmada pelo canto invejoso das sereias. Fariam de tudo para atraí-lo para a beira do barco.
Adolescentes protetoras dos mares, viciadas em heróis. Abatiam sua caça com suas vozes sedutoras. Num mergulho mortal sem volta. Mas ele conhecia essa armadilha. Conhecia este canto. Dominava este golpe. Ele já esteve lá. Nunca se deixou levar.
Esperou anos pelo seu retorno. Sabia o que aconteceria nas próximas horas. Passou a hora seguinte na beira da pedra tentando pensar no que falar quando o visse pela primeira vez. Não falava sua língua há muito tempo. Mas isso não a assustava.
Ela sabia que ele retornava por sua causa.
Escondendo novas cicatrizes, um punhado de tesouros e um oceano inteiro de saudades em seu corpo. “Saudades nos braços e nas pernas”.
Ele sentiu seu perfume de dentro do barco. Não a localizou nas montanhas, mas sabia que estava lá. O vento que vinha da ilha trazia seu cheiro de chuva misturado ao cheiro do suor de seu pescoço, seu hálito de flores e ervas e o perfume doce e desonesto que evaporava de sua nuca. Farejou-a como um cão. Um someliê de aromas matrimoniais. Eles continuavam todos lá, intactos após todos esses anos.
Trouxe o barco até a praia com a precisão de um cirurgião. Ignorando as pedras da costa como se não existissem. Não ofereciam risco algum à embarcação. Conhecia cada uma delas como se tivesse partido dali na manhã anterior. Descendo as ondas como se fossem degraus chegou até a parte aonde a água não chega.
Foi saudado por uma legião de plânctons que brilharam em pequenos riscos sob seus pés ao tocar a areia. O vento adocicado que soprava da mata revelou a presença de sua amada em algum lugar entre as árvores. Ele ainda não a via, mas sabia que estava lá. Sentia o cheiro de sua respiração. Sentia também o cheiro de uma pequena legião de lobos que os olhava com fúria. Certos de um confronto sangrento que jamais aconteceria.