quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Good morning gorgeous

O concurso de pintura de móveis é interrompido pelo som de um alarme. O time das mulheres ganhava com folga ao ter suas peças comparadas à delicadeza de gorila dos trabalhos medíocres do time dos homens. As pessoas na sala olhavam para cima como se procurassem com os olhos uma por campainha dessas de pátio de colégio. 

Meu sonho surreal é penetrado pornograficamente pelo ruído do meu novo relógio despertador.


Então eu acordo com uma ressaca absurda. Sinto vontade de chorar. Percebo com um pouco de medo minha perna queimando por algum motivo bizarro. Mas eu não olho o por quê. Minha cabeça dói, minha boca tem suas partes internas soldadas por uma espécie de goma salgada. Tenho a garganta seca e o braço direito anestesiado porque dormi por cima dele. Percebo que não morri. Mas minha vontade é de morrer.

Minha perna continua queimando. Crio coragem para ver o motivo e levanto só a cabeça. Descubro que deixei as janelas e persianas abertas. Espero que tenha trancado as portas casa. O sol que entra no quarto não encontra barreiras para bronzear a parte de trás do meu joelho que pende ridículo para fora da cama. Minha vontade de chorar piora.

Arrasto-me pelo chão em direção ao despertador. Então as paredes giram num semi-círculo ofuscado minha visão. Este barulho estridente está me enlouquecendo e não quero acordar Lena de maneira nenhuma. 

Lembro-me que no sonho usamos uma espécie de liga feita de pó de ouro, oléo de cozinha e ovos para pintar uma mesinha de centro. Ficou uma bosta. Claro que não ganharíamos do time das mulheres. Desligo o relógio despertador. Sinto que vou vomitar.

Minha vontade de chorar de arrependimento melhora. Essa cerveja americana tem duas únicas vantagens sociais: ela é bem barata e gostosa. As pessoas me olham feio quando as levo para festa.

Sento-me no chão pelado e vejo a luz do sol opaca pelo outono atravessar a névoa que cobre o mar da baía até a altura da metade da ponte. O barulho das gaivotas no porto são exatamente os mesmos dos filmes policiais que assisti a vida toda. Abro a janela para sentir o vendo da praia. Minha mulher cobre a cabeça com os dois travesseiros e resmunga alguma coisa em russo. Eu obviamente não entendo lhufas.

Nu na cozinha ligo a cafeteira antes de colocar o café e a água. É para ir esquentando enquanto eu caço os filtros de papel da garagem. Tenho pressa. Encho quatro copos de água: são dois para mim e dois pra cafeteira. Então o pó de café é espirrado por toda a pia num jato de vapor quando coloco a água no reservatório. Maldita pressa.

Lembro-me da minha linda fada que dorme no terceiro piso só precisa se levantar daqui duas horas. Coloco então mais uma dose de água para o café pra ir evaporando enquanto ela descança linda sobre seus cabelos de baunilha e ouro. Separo o Muffin mais gordinho para ela e vou tomar banho.
Entro no box com a cabeça latejando. Trago uma xícara lascada do Mickey em punho coberta pelo irmão menor de chocolate-chips da família Muffin que a vizinha fez. Esse leite daqui tem gosto de gôndola. O café é igual.

Sinto então o piso balançar sob meus pés enquanto molho a cabeça de olhos fechados no chuveiro. Depois na agência eu pergunto se teve terremoto de novo. Bebo água da pia ao escovar os dentes. Passo o desodorante azul e calço minhas botas Doctor Martins russas. Como ela sabia meu número? Não importa. Sempre me esqueço de perguntar.

Pego minhas chaves e corro em direção ao ponto. A menina do pet shop me saúda dizendo alguma porcaria que não me interessa. Pentelha. Sei que ela gosta de mim. Se folgar muito vai ganhar pescoço quebrado enquanto tosa algum desses cachorros chatos. Minha mulher é ariana com ascendente em escorpião; lua em peixes... e ela não é boba e sabe muito bem que essa garota do Pet Shop me dá mole. A gente nem tem cachorro. Pior: ela é uma gata. Eu adoro dispensar mulher bonita. Eu sou assim.

Sou saudado por um semi-estranho na rua que não só sabe meu nome como também esteve na festa de ontem e amou o som do “Tchico-Science”. Deve ser vizinho. Eu não pergunto. Ao esperar pelo bonde recebo mensagens de dois amigos: Hoje de noite tem mais.

Então o veículo de madeira chega em dois minutos com suas rodas de ferro riscando os trilhos cravados no asfalto. Amo sua pontualidade. Um tio negro e cego com um pequeno rádio de pilhas escuta Coltrane no banco da frente em um volume bem razoável. Sento-me ao lado dele. Ouvir música alto aqui é crime mas ninguém fala nada. São todos cúmplices do senhor Coltrane.

Minha ressaca é suprimida pelo amor: sento-me perto da janela e recebo uma mensagem dizendo "good morning gourgeous" da minha modelo russa. A fada acordou. Minha ressaca passa instantaneamente. Como não posso amar isso aqui?