sábado, 15 de dezembro de 2012

Morde

Sentada na esplanada da ilha, com os pés enrolados embaixo das pernas bronzeadas, a ponta do vestido a espreitar a tua coxa, distraída, brincava com os dedos enquanto eu prosseguia na minha história e, depois de ter despejado para cima de ti todas as minhas verdades, todas as minhas mentiras, olhaste-me com aquele sorriso pequenino, declaraste-me oficialmente o homem do teu verão.
E cumpriste tua palavra.
Ficamos os dois a ver os barcos e a comer devagar refeições de pão, queijo, peixe e mariscos. Quando falavas - e tu raramente falavas - era sobre a tua casa, a planície e o rio. Tinhas inveja da ilha por ter mar, por ter liberdade, mas contavas histórias sobre as barcas nos rios e foi contigo que aprendi que quem navega não sabe conversar, porque o rio tece mistérios vedados às palavras. Contaste-me que em Veneza os gondoleiros têm barbatanas aos pés, para poderem andar em cima da água. Riste-te, lançaste a cabeça para trás e teus óculos caíram na calçada, um barulho de plástico a revirar nas pedras. Foi então que descobri o rio nos teus olhos e comecei a amar-te.
Todos os anos venho aqui. Fico no mesmo quarto e vejo-te de manhã, encostada à brisa que te levantava os cabelos a dizer: anda, anda, morde-me o coração.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Bom Dia.

Sentada no sofá pela manhã.
Ignorando as notícias mudas pelo jornal na TV.
O perfume do shampoo nos cabelos molhados se mistura com o café recém feito.
Ela de calcinha e camiseta sorri com o canto da boca assistido-o separando suas coisas para sair. Ela cantarola alguma coisa. Ele põe tudo na mochila.
E a luz matinal vibra no ar com o frenesi do amor que acabaram de fazer. O café hidrata e adoça seu rito matinal. Bom dia.
Café e suco com poucas palavras. Sua comunicação dispensa o texto. Torcendo para que os vizinhos não tenham acordado, o chuveiro ligado espera pelo próximo banho. E foda-se a água.
O cachorro da parede ao lado saúda o casal em plenos pulmões. Percebe sua felicidade borbulhante como uma lata de refrigerante recém aberta. Talvez ele quisesse participar.
E todos os músculos e tendões tremem, tentando fotografar eternamente os minutos anteriores.
Em que dormiram e acordaram abraçados, despertados pelo sol dourado, fazendo amor com a janelas abertas para entrar o vento da manhã, com as cortinas brancas respirando.
Fazer amor para começar o dia, só para dar sorte. Bom dia!
E o olhar paralisado do gato em cima do criado mudo ilustra seu mais novo trauma. Ele não entendeu nada. (ou entendeu?)
Então de roupas limpas de banho tomado despede-se. Beijo sabor café. Aperta-a com o corpo todo. Agora menta com café. E flúor.
Chama-a de delícia já sentindo saudades. Mais um beijo na boca caminhando em direção à porta. Ela o segura, impedindo-o de partir. "Stay with me a little more. Just a moment longer..."
Que manhã linda. Dia de sorte; pé direito.
Bom dia.

sábado, 17 de novembro de 2012

SAVE THE DATE



Ela desceu as escadas pisando com força. Seus passos descalços fizeram eco no corredor. Reclamou com seu sotaque delícia alguma coisa sobre o Facebook. Quem se importa com o Facebook? Pegou as chaves do carro sobre a mesa e passou me fitando com seu olhar de cachorra braba. Faço força para não a encarar.

Encostado no sofá eu relaxo na minha zona de conforto. Tenho minha visão bloqueada de propósito. Sua cintura se posiciona entre eu e a TV. Ela quer que eu fale. Permaneço em silêncio.
Entµao sou baleado na cabeça. Um tiro apenas. Na testa. Meu corpo cai trêmulo no chão já sem vida. Meus companheiros gritam. É a segunda vez que esse Sniper afegão me acerta de dentro de uma caverna. Dessa vez a culpa é dela. Minha campanha como capitão de um pequeno pelotão em Kabul cai por terra. Sorte no amor, azar no jogo? Pode ser.


Eu pauso o video game e coloco o controle no sofá evitando um desastre ainda maior.

Passo a olhá-la nos olhos. Sentada ao meu lado ela calça os sapados da noite anterior. Eu adoro essas solas vermelhas. Seu vestido de noite contrasta com a luz do dia que penetra tímido pelas frestas da persiana. Ela não diz uma palavra. Bebo mais um pouco de café. Ofereço; ela não quer.
Ela tenta abrir a porta mas o trinco enrosca em suas chaves recém-copiadas. É preciso ter muito queijo para ganhar a cópia das chaves da minha casa. Mas ter as chaves não significa que vai entrar ou sair a hora que quiser. Eu decido. O trinco decide. Ela bufa; eu abro a porta: “ladies first”.


Me levanto sem pressa. Imagino alguma coisa esperta para dizer e evitar que ela atropele meu gato e derrube o portão com sua enorme picape prateada. Não consigo pensar em nada: tomei apenas uma xícara de café e meu cérebro ainda não começou a operar. Sinto preguiça disso tudo. Ela começa a manobrar. Já dentro do carro ela coloca os óculos escuros e sai cantando os pneus. Sinto vergonha pelos vizinhos; mas dura pouco. 


Sou obrigado a sair apenas de bermudas e sem cueca na rua, com um controle remoto na mão. É a única maneira de fazê-la parar de buzinar para sair da vila em que moro. Tem a chave de casa mas não tem o controle do portão. Uma boa metáfora. Penso nisso enquanto me espreguiço. Me curvo lateralmente como se estivesse na academia. O portão se abre devagar. Vejos seus olhos cheios de fúria me fritando pelo retrovisor. Ainda bem que ela não é o Cyclops.


Ela sai acelerando na rua. Raspa o fundo do carro no desnível do meio-fio numa ralada barulhenta. Acelera mais ainda e sai do meu campo de visão. Eu espero o portão se fechar.


Entro em casa feliz pela integridade física do gato que dorme no capô do carro da minha vizinha. Lindo, preguiçoso e tomando sol. Eles combinam.


Tranco a porta e passo a chave tetra. É só para garantir. 


Sento-me no mesmo lugar e revejo mentalmente o que fiz para aquilo acontecer. Cada passo, cada decisão, cada escolha. Arrependido me concentro. Respiro fundo e decido voltar atrás. Engolindo meu orgulho eu tomo a decisão correta: eu aceito retroceder.


Essa é sem dúvida a mais importante escolha da semana. Bebo mais um pouco de café. É hora de agir. Corajoso acato minha decisão: tiro o jogo congelado do "pause" e digo em voz alta para mim mesmo: "Agora eu mato aquele Sniper filho da puta!!" 

domingo, 29 de julho de 2012

Felinas

A luz do quarto não ajuda a se maquiar. O cuidado aos cílios é feito com um traço de luz da rua que entra pela  janela. Luz fria de poste: meio verde, meio azul, sem romantismo nem calor. Ótima para se maquiar.

As persianas de madeira captam o vento da rua. O velho rádio sintoniza a estação de jazz. Contrasta com o barulho da rua. Carros e motos se movimentando embaixo.

No prédio da frente o gato do vizinho equilibra-se no parapeito. A luz da TV de domingo tinge a parede de trás de sua morada, desenhando sua silhueta congelada, seu olhar felino.

Sentada à escrivaninha, fixa-se ao espelho com as costas eretas.  Os cabelos encerrados num coque inteligente aguarda pela sua vez na fila. Empina a bunda e a ponta do queixo como se esnobasse o mundo. Coxas redondas, afastadas; desnudas pela barra sovina do vestido. Revela na pele pequenos poros e pelos louros queimados pelo sol, microscópicos. Lindos.

A maquiagem nos olhos então a tornam felina. Ela também tem mais do que seis sentidos. Olha de novo seu reflexo ensaiado fazendo dois olhares diferentes. Não precisa ensaiar mais do que isso. Confirma mentalmente quem é de novo. Só para lembrar. Não posso esquecer.

O cigarro impresso com batom ganha uma cinza enorme durante o rímel. Um trago antes do próximo olho. Muda a estação com o cigarro entre os dedos. Mais jazz, mais um gole, mais um trago e um pouco de batom na borda do copo de vinho. Quem se importa com batom? Tenho um bastão inteiro para você aqui, babe...

Seu vestido pende no cabide. Dança de leve com o vento de chuva nas persianas. Vento quente de noite. Vai chover mais tarde. Pendurado no puxador da porta seu movimento hipnotiza o gato vizinho: lânguidas, felinas em noite de Lua cheia. Se ele chegasse até lá; pulava.

Limpa os dentes de batom com a ponta dos dedos. Apaga o cigarro no cinzeiro roubado do motel. Não foi ela quem o trouxe mas ficou pra ela. Ótima metáfora.  

De cima da cama sua gata a olha com indiferença. Óbvio. Ela é uma gata. Presta atenção na dona enchendo suas vasilhas de água e ração. Ela não se move. O que sobra da água vai para planta ao lado dos livros. Fecha então as janelas e a porta da varanda. Acaba com a alegria do gato curioso.

É hora de se despir. Tira seu vestido e blusa com o cuidado para não borrar a maquiagem. Calça os sapatos e passa perfume só no busto. Admira-se gostosa no espelho. Devolve o cabide vazio no puxador da porta da varanda. Amanhã eu guardo...

Acaricia o queixo da gata com a ponta dos dedos: deitada na cama com as patas enroladas sobre o corpo ela levanta a cabeça como se quisesse mais carinho. Não ganha. “Comporte-se menina”.

Abre a porta e sai. Dá duas voltas no trinco. Esconde a chave sob o capacho e desce pelas escadas do prédio. Seus saltos ecoam enquanto as luzes automáticas apagam nas suas costas.

Não sabe que horas vai voltar. "Ainda bem que dei comida para a gata".

terça-feira, 24 de julho de 2012

Good Morning

Sitting on the couch in the morning.
Ignoring the muted news on the TV
The scent of the shampoo over her wet hairs fights the scent of the fresh coffee recent made.

She smiles in her panties and shirts out of the corner of the mouth separating her things before to leave. She hums something. Some song that I just know will stick to my mind the whole fucking day. And he puts everything in his backpack.

And the morning light in the air vibrates with the frenzy of love that they just did. Coffee and sugar hydrates their morning rite. Morning glory... Good morning.

Coffee and orange juice with a few words. Communication that eliminates the text. Hopefully, the neighbors have listen to us, and the shower running water, waiting for the next bath. And fuck the water.

The dog greets the wall beside the couple on full lungs. Realize their happiness as bubbly newly opened soda can. And all the trembling muscles and tendons, eternally trying to photograph the previous minutes.

When they slept and woke up holding each other, aroused by the golden sun, making love with the windows open to get the fresh morning wind, with white curtains breathing.
Making love to start the day, just for luck. Good morning...

And the look of the cat stuck on top of the bedside table illustrates his latest trauma. He did not understand anything. (Or get it?)
So clean now with clothes and bathed he departs. A coffee flavored kiss. Holds her with his whole body. Now mint coffee kiss. A fluoride kiss.

Calls her gorgeous already feeling homesick. One more kiss on the mouth walking toward the door. She holds him, preventing him from leaving. "Stay with me a little more. ... Just a moment longer"

What a beautiful morning.
Lucky day, right foot.

Good morning

terça-feira, 19 de junho de 2012

Castaway (também sei ser piegas)





Tinha a proteção dos elementais na natureza. Abriam seu caminho pelo meio do mato, a olhavam em silêncio enquanto caminhava pela praia. Fechavam a mata para aqueles que a seguiam e desviavam rios e agitavam mares para os piratas obcecados por sua beleza.
Despertava inveja nas sereias no mar. Fazia os marinheiros mudarem de rota. Inspirava os índios em suas gravuras rupestres com seus cabelos negros como a chantagem. Saía para caçar com os felinos da mata. Dormia em cima das árvores para se acostumarem com seu cheiro. Puxou seus cacoetes e trejeitos para si.
Conseguia notar a vinda da chuva há dias de distância. Sentia micro gotas perfumarem as narinas olhando as nuvens subindo como cogumelos no horizonte. Sentia-se lasciva com isso. Cheiro de chuva que vinha do mar e ainda não havia chegado à terra. Água por vir. Promessa de mais. Ela sabia quando ia chover. O perfume da chuva a tornava fértil. Deixava seu rosto magro e seus cabelos mais lisos.
Andava descalça pela restinga. Seus pés não se feriam com espinhos nem conchas incrustadas nas pedras. Cortava caminho pelo meio da briga de feras. Pisava com delicadeza sobre animais peçonhentos e sua pele não se queimava muito no sol. Seus olhos negros enxergavam melhor no escuro. A guiava pela noite pelo caminho certo.
Naquela noite chegou bem alto na montanha, escoltada por lobos famintos. Uivando de fome e desejo, a entregaram em segurança em seu destino final. Salivando pelo canto da boca como se antecipassem uma refeição que nunca aconteceria. Hipnotizados pelo seu cio eles choravam de medo e desejo por dela.
Dispensou a companhia dos bichos com seus olhos de cachorra braba. Faziam barulho demais e ela já esta farta daquilo. Sentou-se sobre uma pedra e viu o barco chegar.
Viu sua pequena embarcação apontando no horizonte. A luz da lua Nova não a ajudou nem um pouco. Mas não precisava. Teve sua identidade confirmada pelo canto invejoso das sereias. Fariam de tudo para atraí-lo para a beira do barco.
Adolescentes protetoras dos mares, viciadas em heróis. Abatiam sua caça com suas vozes sedutoras. Num mergulho mortal sem volta. Mas ele conhecia essa armadilha. Conhecia este canto. Dominava este golpe. Ele já esteve lá. Nunca se deixou levar.
Esperou anos pelo seu retorno. Sabia o que aconteceria nas próximas horas. Passou a hora seguinte na beira da pedra tentando pensar no que falar quando o visse pela primeira vez. Não falava sua língua há muito tempo. Mas isso não a assustava.
Ela sabia que ele retornava por sua causa.
Escondendo novas cicatrizes, um punhado de tesouros e um oceano inteiro de saudades em seu corpo. “Saudades nos braços e nas pernas”.
Ele sentiu seu perfume de dentro do barco. Não a localizou nas montanhas, mas sabia que estava lá. O vento que vinha da ilha trazia seu cheiro de chuva misturado ao cheiro do suor de seu pescoço, seu hálito de flores e ervas e o perfume doce e desonesto que evaporava de sua nuca. Farejou-a como um cão. Um someliê de aromas matrimoniais. Eles continuavam todos lá, intactos após todos esses anos.
Trouxe o barco até a praia com a precisão de um cirurgião. Ignorando as pedras da costa como se não existissem. Não ofereciam risco algum à embarcação. Conhecia cada uma delas como se tivesse partido dali na manhã anterior. Descendo as ondas como se fossem degraus chegou até a parte aonde a água não chega.
Foi saudado por uma legião de plânctons que brilharam em pequenos riscos sob seus pés ao tocar a areia. O vento adocicado que soprava da mata revelou a presença de sua amada em algum lugar entre as árvores. Ele ainda não a via, mas sabia que estava lá. Sentia o cheiro de sua respiração. Sentia também o cheiro de uma pequena legião de lobos que os olhava com fúria. Certos de um confronto sangrento que jamais aconteceria.