quinta-feira, 25 de abril de 2013

Revista


Eu te vi numa revista na semana passada. De vestido preto, tatuagem no ombro e seu sorriso branquinho. Usava os brincos que te dei no réveillon. Reconheci sua amiga esquisita que encontramos no Rio, naquela festa doida do meu amigo DJ.

Te vi numa revista na semana passada de vestido preto, cabelos louros e seu sorriso branquinho. Olhinhos pintados do jeito que eu gosto. Devia pintá-los sempre, babe. Reconheci na foto o clube cafona que insistia e em visitar e eu insisti até o fim em evitar. Evitei! Reconheci também uns três caras ao redor fazendo pose de vitória, paparicando descaradamente sua amiga esquisita.

Te vi numa revista e me lembrei da primeira vez que usou este vestido comigo. A festa na cobertura, naquela noite de calor em que não pintou os olhos e vimos a coluna de fumaça feita pelo carro em chamas subir diante dos nossos olhos; 32 andares para baixo. Ardendo em no acostamento da Marginal. Encostados no parapeito nos lembramos do filme Cloverfield que assistimos em casa aquele dia que surtou.

Te vi numa foto de revista com a legenda errada, num clube cafona desses do Itaim, com um vestido que eu curto e os brincos que te dei. Demorei para reconhecer e assumo que achei linda e devo confessar: sua amiga mudou bastante. Acredito que os sapatos que usava ela emprestou de você. Reconheci também. Eu conheço seus sapatos.

Te vi numa foto de revista com a legenda escrita errada. Num clube que acho cafona, com aquele vestido que eu adoro. Demorei para reconhecer, mas vi que usava os brincos que te dei no réveillon. Você estava de ombros de fora, tatuagem à mostra. Com os olhos pintados e seu sorriso branquinho.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Viajei para Brasília na sexta feira

Sexta-feira de manhã o Aeroporto de Congonhas se parece com um hipermercado. As pessoas carregam malas, pacotes, embrulhos, garrafas térmicas e conjuntos completos de pneus embrulhados numa espécie de totem de selofane transparente. Duvido que para aonde estão indo não haja a mesma coisa para comprar.
Muitas malas estão hermeticamente vedadas com uma espécie de filme azul como se estivessem indo para o micro-ondas. Na verdade, estão indo para Bahia - bem mais quente que um forno micro-ondas.
Meu portão de embarque é o número oito. Ponte Aérea São Paulo - Brasília. Na sala de embarque os únicos sem terno somos eu e uma garotinha de uns 6 anos. Ela se arrasta pelo chão azul escuro reluzente, recém encerado, como se estivesse nadando no fundo do mar. Seu nome é Marina e ela ama o Bob Esponja. Eu também, mas não nado de barriga no chão como se fosse um pinguim.
Os alto-falantes nos chamam para o embarque e o pai da garotinha calmamente espera que ela chegue “nadando” até ele do outro lado do salão, se arrastando com a barriga no chão. Se parece com um pinguim escorregando por um iceberg. Se fossem meus pais, já teriam me levantado pelas orelhas ao primeiro chamado.
Dentro do avião, reparo que aquele discurso de segurança que as aeromoças encenavam, foi substituído por uma telinha que desce do teto sobre cada assento do avião. Muito melhor assim. Me dava agonia ver a aeromoça colocando a máscara de oxigênio na cara e falando que em caso de despressurização da cabine, primeiro coloque a máscara em você e depois nas crianças. Lembro do pinguim do saguão do embarque. Pelo menos ela parece saber nadar.
Mas agonizante mesmo, são os avisos de “acentos flutuantes” colados nas cadeiras. Não sei até que ponto isso é uma vantagem: ficar boiando numa poltrona no meio do Oceano Atlântico não faz parte dos meus planos de final de semana. Ainda bem que Brasília não tem mar.
O discurso de segurança termina e é substituído por um programa sobre música. Milton Nascimento com seu violãozinho Ovation vermelho, num sofá dando entrevista com aqueles caxinhos. O Milton é um cara maneiro. Gosto das coisas que ele faz e diz. Mas estou concentrado numa coisa bem mais importante: acho que a aeromoça está flertando comigo. Já é a segunda cerveja que eu peço e ela me fornece com imenso prazer. Um sorriso fantástico. Ela quase me elogia cada vez que pego uma nova cerveja e a entrego a lata vazia.
Que sentimento lindo! A impressão que tenho, é que ela me acha mais másculo por conseguir ingerir tantas cervejas. Imagino que quando elas se encontram no fundo do avião, atrás daquela cortina cinza que separa o corredor da cozinha, ficam comentando como sou incrível por beber tantas cervejas.
A aeromoça vai para o fundo do avião rebolando discretamente, enquanto empurra aquele carrinho de metal cheio de drinks e amendoins. Deve pesar uma tonelada, o carrinho; é claro.
Milton sai de cena e entra Caetano Veloso, com uma camisa amarelinha de botões de coco desabotoados pouco abaixo do pescoço. Um cordãozinho nojento do pescoço. Parece de couro. Agradeço à Deus pelo volume estar no zero e eu ter trocado meus fones de ouvido por latas de cerveja vazias. Cada vez mais me encanto pela aeromoça. Ela só melhora a minha vida.

A carranquinha cinza do Caê me dá angústia. Quando ele sorri, sua boca e o queixo se deformam numa pilha de rugas formando uma letra “V”. Sua cabeça tem formato de uma picanha e a fresta aberta em sua camisa revela um colarzinho de miçangas meio roxo e sim, o cordão é couro. Que nojo. Melhor olhar as aeromoças.
Reparei que elas vestem roupas com forte apelo à indumentária espanhola. Cabelos também. Eu gosto disso. Peço mais uma cerveja que vem junto com um sorriso estampado nos lábios de batom vermelho. Não consigo me cansar disso. I love this game.
O avião chega. Mais um sorriso antes da despedida. Espero te encontrar logo aeromoça. Nua. Usando apenas este lenço no pescoço e seu batom vermelho, empurrando o carrinho de uma tonelada cheio de cervejas para mim.
Recobro minha consciência. Brasília é quente como o Inferno de Dante. Quem me espera no aeroporto é uma das mais legais assessoras de imprensa de lá. Seu nome é Bruna.
Deve ser a terceira vez que trabalhamos juntos. Hoje será a festa de abertura do nosso festival que ocorre daqui um mês. O DJ da festa chega mais tarde neste mesmo aeroporto. Vem em outro voo e de outro lugar. Fico meio ansioso com a possibilidade de ele não chegar. Tento me convencer mentalmente que isso não vai rolar. É obvio que ele vai chegar. A noite promete.
De dentro do saguão do aeroporto vejo a Bruna. Sorriso inconfundível. Como eu nunca despacho a bagagem, saio do saguão em um minuto direto para os braços dela. Somos apenas amigos.
Vim aqui para acompanhar um DJ europeu que está em tour pelo Brasil. Ele precisa que um tour manager o acompanhe nestes dias. Modestamente, posso dizer que sou a pessoa certa para o trabalho.
Tour manager é um trabalho legal. Você tem que se preocupar com o transporte local, refeições, exigências técnicas, hotéis, trocas frequentes de voos, passagem de som, exigências de camarim e mais um lote de tarefas que ocupam seu dia, mas fazem valer a pena.
O artista é meu amigo de longa data. Francês de Lyon, Sabastién (DJ Agoria) e ele adora o Brasil. Primeira coisa que fazemos depois de chegar ao hotel é ir comprar Havaianas no shopping do outro lado da rua. Ele quer as que tem a bandeirinha do Brasil nas tiras. São bem mais fáceis de achar por que ninguém as quer. Mas não conto isso pra ele.
O shopping que só vende coisas cafonas. Impressionante: Vestidos longos rosa - choque com lantejoulas costuradas, vestidos longos verde-abacate com rendas bordadas. Quem será que veste isso? Parece uma loja de fantasias da Rebouças.
Na volta Sebastién me diz que quer dormir. DJs sempre fazem isso, pois passam maior parte de noite acordados trabalhando. Aproveito a brecha para ir até a piscina no terraço do hotel. O calor em Brasília é absurdo. Qual não é minha surpresa ao encontrar a menina Marina na piscina! O pinguim do saguão do aeroporto.
Marina usa boias de braço daquelas infláveis, cor-de-rosa e com nosso ídolo estampado: Bob Esponja. Ela me explica calmamente que Bob não poderia ir à piscina pois a água do mar é salgada, diferente da qual estamos imersos. Que menina esperta! Por quê será que estava nadando no chão do aeroporto?!

Já com as mãos enrugadas iguais às da Marina volto ao quarto para me vestir para a festa. A cidade toda só fala nisso: festa ultra VIP numa balada que aparentemente fica dentro de um shopping (?!). Se eu soubesse disso comprava as Havaianas na hora da festa.
A festa foi boa, nada demais. Encontrei velhos amigos de outros festivais e fui embora de carona com outra amiga.
Dia seguinte, seguimos pra Campo Grande, Chapada dos Guimarães. Lugar incrível, festa bacana, pessoas estranhas e a mais amarela Lua que já vi na minha vida.
Um repórter da TV local, insistiu em pular em cima do palco. As picapes de Sebastién começam pular também. Regra número um: Não se pula em palco aonde DJ toca. Sem muita paciência, peço ao repórter, com sua inusitada peruca punk de Moicano rosa e colar de flores havaiano (chama-se Leii na língua havaiana), que desça do palco. Afetado, ele diz coisas que não compreendo por causa do sotaque. Não faço questão de entender. O moço fica nervoso mas desce assim mesmo.
Já de volta ao hotel as oito da manhã, Brasília é tão fria quanto Curitiba, quando comparada ao calor de Campo Grande. Segundo o motorista da nossa van Sr. Arismar, “durante a semana fez 42 graus”. Dava para fazer sopa de Bob Esponja na piscina do hotel, pensei comigo. Combinei com Sebastién de nos encontrarmos na piscina em 5 minutos.
Cerveja no café da manhã é uma coisa incrível. Dá um certa culpa no começo, mas passa no primeiro gole. No máximo depois do primeiro arroto. Mas aqui eu não arroto alto. Sou um cara educado, estudei em colégio fino e ao meu lado está tomando sol uma gata toda tatuada vestindo um biquíni rosa com estampa amarela de flores. Não, ela não curte muito o Bob Esponja. Nem o Lula Molusco. Não sei se ela não me entendeu ou se eu que não a entendi. Tenho certeza que falamos português. Nossa comunicação, entretanto, foi nula.
Dormir pra quê, quando você tem um frigobar cheio de Red Bull no seu quarto? Não vou precisar usar muito meu cérebro para tomar banho e pegar a van até o aeroporto. Abro outra cerveja e lembro da funkeira carioca “Tati Quebra Barraco”, misturando cerveja com Red Bull no copo numa festa que eu fui. Mas eu não faço isso. Tomo um gole de cada copo. Separados mesmo. Lembro de entender que a gata tatuada me disse se chamar Margarida. Duvido.
O caminho até o aeroporto é curto, com sono e de ressaca eu entro no avião de óculos escuros. Estou sem dormir a alguns dias. As aeromoças são outras e não me empolgo em beber mais cervejas. Se tivesse canja eu tomaria.

Chego no caos do Aeroporto de Congonhas num domingo à tarde. Muitas pessoas com malas embrulhadas no filme para micro-ondas se apressam para o embarque. Da próxima vez que for pra Brasília ou Campo Grande levo um pote de sal de frutas. Mas só tomo se ficar bom misturado com cerveja.

Para onde a noite foi?

Já faz algum tempo que o relógio enxaguou a meia-noite
trazendo a madrugada
Oh Deus, devo estar sonhando
Hora de levantar-me novamente
Hora de começar tudo de novo
Vou tentar me recompor, mais uma vez

Eu deveria estar dormindo na hora que estava bebendo cerveja
e tentava começar outra carta para você
Não sei quantas vezes sonhei em te escrever na noite passada
Deveria estar dormindo
ao invés de ficar revirando aquela pilha de discos
E não deveria estar acordado sozinho

Para aonde a noite foi?

Tenho que ir dormir.
Eu digo foda-se para o trabalho e dinheiro
Porque gastei tudo nestes cadernos sem linhas
E agora não consigo seguir a diante

“Minha amada, como está você?”
Escovo os dentes, faço a barba
Olho para fora, o céu está escuro
Acho que vai chover

Para onde foi?
Para onde foi?
Para onde foi?

QUANDO ELA USA RIDER ROSA

(imagem ilustrativa - esse não é o calçado citado)



Tenho 1,66 de altura. Sou mais baixo que a maioria dos meus amigos e isso nunca me deu azia. Quando eu era mais novo cheguei a ficar frustrado com alguns foras ou desaprovações femininas mas isso nunca foi muito grave. Foram poucos casos. Para minha sorte eu não sou feio – o que compensa um pouco a minha condição.

O lance da minha altura me atrapalhou sim em outras ocasiões. As prateleiras mais altas do supermercado ou algum eventual valentão que não se intimidou pelos meus anos de Jiu-Jitsu fizeram parte das poucas ocorrências. O Jiu-jitsu nunca precisei usar de verdade e no supermercado sempre tem um tiozinho altão carregando as prateleiras por perto que gentilmente alcança para mim a garrafa de dois litros de óleo de fazer massagem com fragrância de chocolate e menta.

Mas houve uma coisa positiva que aprendi a avaliar durante vida: a reação calçadológica feminina com relação à minha altura. Uma indicação infalível e constante na dinâmica da conquista. O truque é observar o calçado que a gata usa a partir do nosso segundo ou terceiro encontro: se o sapato é de salto baixo isso indica que a garota está afim. Simples assim. 

A maior parte das moças que eu fico são mais altas que eu. Passei a reparar nisso e concluí que 90% das vezes que rolou alguma coisa, o sapato era sem salto, sandália, ou sapatilha.

Eu honestamente tenho uma paciência irritante quando o assunto é conquistar uma bela mulher. Consigo sair com ela várias vezes e não fazer nada demais. Consigo não avançar o sinal. Juro; eu sou assim. Não reajo muito bem aos foras então sempre preferi dar o bote depois de já ter certeza que será tiro certo.

Mas...

Naquela noite, quando a porta se abriu, ela calçava um par de chinelos Rider cor de rosa. Aqueles... de plástico, com a tira larga espumada por dentro, meio encardidos, ressecados e imperdoavelmente... rosas...

Foi um tipo de curiosidade mórbida. Fiquei instantaneamente hipnotizado por aquela lancha medonha que lembrava o futom da Barbie. Uma posta de borracha igual a que sua prima usava pra levar o cachorro passear enquanto fumava escondida escutando Gun & Roses no Waklman.

Pensei que não fabricavam mais desses. Achei que tinham proibido. Se não proibiram deviam proibir. Na hora que vi (um segundo depois da porta abrir) fiquei desnorteado. De fato aquela mulher não estava me dando mole mesmo - algo que eu confirmaria depois.

Um pezinho bonitinho, unhas pintadas, anel no dedinho... Pode falar que é cafona. Eu adoro anel no dedinho, igual ao filme Jackie Brown. Mas bem que ela podia estar descalça. Ela não queria ficar nem sexy, nem na altura ideal. Ela estava confortável em seu apartamento “optando pelo simples”: simplesmente foda-se: estou  de Rider e você que foda.

Aquilo doeu mais do que um fora. Me tirou o prumo. Era ao mesmo tempo um fora, um caso de descaso estético e ao mesmo tempo descaso social. De fato naquela noite não teve bandeira verde para mim. Teve bandeira rosa. Passei algumas semanas com aquilo na cabeça. O alerta podólogo me vinha na forma de um par de chinelos velhos dos anos 90. Como uma lagarta amarela e venenosa, perambulando sem medo na Amazônia, falando através das cores que ela não era de comer.

Um tempo depois viajamos à trabalho para o Nordeste. Hotel de luxo, evento grande, calor na cidade. Já na noite em que chegamos combinamos de sair. Eu passaria em seu quarto para levá-la para jantar.

Fiz a barba, arrumei o quarto e visualizei em imagens brilhantes uma linda e romântica noite pela frente igual ensinaram no filme “O Segredo”. Passei perfume e escondi os preservativos no criado mudo fechando o quarto fazendo figas.

Quando ela abriu a porta estava linda. Uma saia colorida de algum tecido bem fino e leve que eu obviamente não sei o nome por que sou macho, uma blusinha branca levemente apertada, colarzinho exótico e os pés... descalços (?!) Mais uma vez meu método de interpretação “Podólover” me jogava para o acostamento. Com aquela menina não tinha interpretação de tênis.

Ela me deu um beijinho de “oi” e me pediu para entrar porque estava terminando de se arrumar. Me ofereceu uma long neck trincando e me pediu para sentar.

Concorreu com o barulho do secador de cabelos durante alguns minutos, falando de dentro do banheiro da suíte. Fui elegante e mesmo sem entender nada do que dizia concordei com todas as palavras. Deixou a porta entreaberta para que eu conseguisse ver sua sombra dançar.

O que parecia impossível aconteceu: ela saiu mais linda do que entrou. Colocou o cartão e os cigarros dentro de uma pequena bolsa e me estendeu a mão dizendo que estava pronta.

Me levantei. Pude então ver seus pés por trás da cama. Calçava uma mini-sandália de couro, ultrafina, de tirinhas; linda e sem salto algum. Me disse: - o que acha da gente jantar e depois voltamos para beber por aqui?!

Concordei com a cabeça; feliz como um cachorro com a cabeça para fora da janela do carro. Aquela noite eu estava pé quente. Pensei comigo mesmo: Acho que vou ter que chamar o tiozinho altão para alcançar a garrafa de dois litros de óleo de massagem de chocolate com menta na volta.

Lock

She took the bottle of vodka and went into the bathroom. 
I hear the sound of water filling the tub now. 
If the apartment floods; she will have to pay.

--

Ela pegou a garrafa de vodka e entrou no banheiro.
Eu escuto o som de água enchendo a banheira agora.
Se o apartamento inundar; ela vai ter que pagar.


Dono

Me pergunto a que horas você volta. Me lembro sempre que vejo tuas roupas penduradas na cadeira. Escuto o silêncio ecoar no apartamento numa tarde de dia da semana. Refresco-me deitando no chão. Eu gosto mesmo é de deitar no chão do banheiro ou da cozinha, mas hoje, a porta está trancada. Não sinto vergonha de confessar isso. Por mim; tudo bem.

De alguma maneira gosto de ter casa só para mim. É melhor do que dividi-la com aquelas crianças histéricas que me alugam até a hora de partir. Escuto o barulho das pessoas no corredor e vejo a sombra dos pés do carteiro passar. Isso não me faz companhia nem me tira do meu silêncio. Mas lembra que estou vivo e que está tudo bem. Então bebo água fazendo barulho. Não tem ninguém por perto mesmo. Escuto a geladeira ligar. Seu termostato preciso mantém a comida em dia. Eu adoro essa geladeira.

A vizinha de cima é sempre notada. Seus saltos duros escancaram sua chegada e saída. Lembro-me de tê-la reconhecido um dia desses no corredor. A reconheci pelo cheiro e pelo salto. Um perfume doce e caro desses que ficam impregnados no elevador nas tardes de Sábado – provavelmente algum número de Chanel. Ela chegou em casa há pouco. Escuto seu barulho denunciado pelo piso do andar de cima. Foi ao banheiro. Escuto até o chuveiro. Saltos de novo agora só amanhã de manhã.

Tem gente no prédio que abre a porta para o cheiro da fritura fugir pelo corredor. Um péssimo hábito. Devia ser proibido. Hoje foi dia de bife então resquícios do almoço permanecem socializados no ar. Deve ser porque teve feira. Quinta feira. A rua fica fechada desde cedo e sou acordado repetidamente durante a madrugada pelo barulho inconveniente de comerciantes mal educados e suas barras de ferro fincadas no chão. Eu não me importo mais. No passado faziam muito barulho e isso não me deixava dormir. Não sei se melhoraram ou se tinha ouvidos mais apurados.

Mas nesse momento eu permaneço imóvel. Economizo energia em minha imobilidade proposital. Suspiro alto como se despressurizasse o tédio e sinto todos os cheiros por baixo da porta ventando pelo corredor. 

Escuto os sons do prédio nesta tarde abafada de dia da semana. Me entretenho pelo balanço lânguido da cortina que se move com o vento da fresta aberta da janela. Acompanho com os olhos denunciados pelas minhas sobrancelhas expressivas. Mas não me movo.

Hoje tem rádio. Trocaram as pilhas - graças a Deus. E eu adoro essa estação. Tem pouco anúncio e toca muito jazz. Miles, Coltrane, Holiday e Pat Metheny. Eu adoro jazz. O pessoal daqui de casa também.

Bebo mais água, mais um xixi, mais um sonho, mais um pum. Suspiro. Esse foi fedido. Noto as luzes da casa que entram pela janela diminuir. E as horas passam mais depressa na cozinha, aonde o ponteiro dos segundos risca o silêncio. 

Escuto a empregada do lado chegando com as compras. O farfalhar dos sacos. Esqueceu que tinha feira; Santa? Hoje é quinta feira... Eu gosto dela mas aposto que chupa o Leite Moça da patroa direto do furo da lata. É verdade que me irrito com seu espirro esporádico no meio da tarde. É tão alto que ecoa no corredor do vão do prédio. Espirro típico de empregada doméstica sozinha em casa. Maior chuva na pia. Que nojo. Já quase enfartei por isso. Maior susto. Te juro. Me apavora. É que eu tenho um ótimo ouvido. Eu sou assim. Tenho um ótimo ouvido.

Moramos no terceiro andar então as vezes subimos pela escada mesmo. Eu não me importo. E eu gosto do cheiro da escada do meu prédio. É um cheiro bem característico: cheiro de escada de prédio antigo. 

E daí sinto teu cheiro por baixo da porta escuto teus passos no corredor. Pondero ansioso se é mesmo você. Meu coração dispara. Fico na dúvida, imóvel. Te reconheço pelo cheiro: sim é você entrando através hall do prédio. Mas eu te reconheço. Não é seu perfume. É o teu cheiro. Adoro teu cheiro. Te espero na porta.

Te escuto saindo pelo elevador. Me seguro para não fazer barulho conforme me instruíram. Você entra e eu não pulo. Sei que me ama ainda mais por isso. Ganho um beijo na cara e um abraço apertado que me estrangula deliciosamente. Senti sua falta moça... E você afaga com gosto meu pelo macio.

Sei que agora falta pouco. Balanço o rabo com o corpo inteiro numa celebração amorosa da volta da tua companhia sagrada. Adoro quando volta. Agora larga tuas coisas e pelo amor de Deus: me leva para passear.

Luthor

Era o mais alto prédio da cidade. Suas colunas laterais se projetavam no horizonte como enormes fontes de luz. Refletores gigantes o iluminava por baixo tornando-o um marco único na paisagem. Gostava de pensar que, qualquer um que o quisesse ver teria de olhar para cima.

Uma cobertura daquele tamanho abrigaria umas 10 famílias com conforto. 30 se fossem chineses. Mas neste momento ele era o único ali. Vazia, escura, ecoando o vento e o Jazz. Suas cortinas iluminadas como fantasmas familiares, voando para fora das janelas. Ele apertou o copo e pensou rangendo os dentes: "- eu construí esta cidade para você...”

Mais de 70 andares para cima ele se postava bem na beira. Olhava atônito para o horizonte comtemplando luzes cintilando no movimento no evaporar orgânico da cidade. O vento que balançava suas roupas provando com agressividade que ele estava alto demais. Cuidou apenas para que sua gravata não se molhasse no copo de Whisky.

Apertando os dentes e punhos ele a procurava quase tolo com os olhos. Se inclinava como se fosse possível vê-la daquela altura. Reparando em cada esquina, cada janela, cada carro que tivesse a mesma cor que o dela... Inútil. “Eu construí esta cidade para você...”

Tentava se lembrar como tudo aquilo começou. Lembrava-se do porquê tinha acabado. Lembrou dos mimos, dos carinhos, das coisas que comprou para selar seu amor. Funcionou durante um tempo. Ele sabia que ela o achava encantador.

Neste momento ela poderia estar em qualquer lugar. Não estava com ele. Sabia que não estaria em nenhum lugar que a fosse procurar. Estava solta. Agora livre, ferida e certa de seu novo destino. “Eu construí esta cidade para você...”

Algumas roupas ainda estavam ali. Muito mais do que ele se lembrava. Encontrava seus rastros pela casa de maneira randômica. Quando menos esperava, quando menos precisava, quando menos queria. A via no quadro que compraram juntos ou nos dois porquinhos de cerâmica remanescentes, depois que o terceiro caiu da cômoda enquanto faziam amor.

Partindo-se pelo chão, em milhares de pedaços coloridos... Família desfeita.

Era uma bela metáfora... “Eu construí esta cidade para você...”

O Último Dia de Verão




E o sol já bem baixo laranja chega perto das árvores. Paquerando o horizonte. Com a boca meio queimada de sol, salgada e ardendo na fronteira entre a pele e os lábios. Queimando desidratados com o suor que evaporou durante o dia. A boca seca de terra e sede que pede água. Procuro com os olhos um bebedouro no parque. Hoje é o último dia de férias.

Uma névoa seca no ar delineia a sombra das folhas e galhos numa projeção dourada no chão. Entope as narinas e irrita os olhos. É poeira levantada o dia todo por uma legião de bicicletas insistentes de crianças que pedalam gritando. Meu dia está começando a acabar.

Encontro um bebedouro. Me refresco implacável num gole público que brota na calçada. A morte da sede revela um alívio infantil. O cheiro de água que vem em direção a testa me leva de volta no tempo. Cheiro de água que fazia tempo que não sentia. Molho o rosto e deixo a água escorrer por dentro da gola num alívio melado entre o queixo e o pescoço.Tiro a camiseta.

E as férias de verão terminam com o pôr do sol nas costas. Voltando do parque segurando a camiseta e falando alto. Sentindo o ar esfriar ao passar perto do mato. A boca não está mais seca. Pedrinhas safadas que se escondem nos cantos do tênis passeiam pela sola dos pés. Vou tirá-las mais tarde.

E o barulho dos balanços enferrujados guinchando com crianças centrípetas é o tema da tarde.

À caminho da saída vi seus cachinhos amarelos embalados pelo vento, lambendo o ar num vai e vem conhecido. Linda em seu macacão bordado; ela é intima do balanço.

Suas mãos têm covinhas. Vermelhas de ferrugem e terra apertam com força as correntes do brinquedo. Pés gordinhos de sola preta descalços e  de dedão para cima. Inclina-se para trás sem medo tentando chutar a nuvem de formigas com asas que foi parcialmente ingerida pelos ciclistas na quadra anterior. Chuta alguns insetos.

Parece que ela vai pular.

Seu sorriso antecipa um salto absolutamente desproporcional à sua idade. Espera o ponto em que quase pára no ar; o ponto mais alto de sua trajetória centrífuga. Espera de novo. Aguarda outro ciclo e depois mais uma vez. Pondera. Concentra. Vacila... Apóia os braços nos elos laterais do brinquedo e se joga...

O tempo pára por um segundo. A garotinha voa por cima da grama.

Eu a vi cair em pé. Levantou correndo. Sorrindo malandra com a língua para fora. Com a queda suprimida pelas mãos em frente ao corpo se levanta e limpa a terra na roupa, orgulhosa do feito.

Ri da coragem da menina no caminho de volta. Loirinha malandra.

Talvez suas férias não terminassem naquele pulo. Talvez terminassem. Ela não se importava.Pulou alto. Isso é o que importa.

Já sem sol me lembrei do parque ao tirar os tênis no banheiro com as pedrinhas rolando pequenas pelo azulejo. As chutei com o dedão para o ralo.

Ardendo a boca no chuveiro pensei na chatice do dia seguinte. Em que voltaria a velha rotina, com a lembrança na pele queimada de suas férias, que terminaram num pulo; numa tarde no parque.

quinta-feira, 18 de abril de 2013


Todos os pensamentos são preces
Verbalizar é o primeiro passo para torná-los realidade
Seja positivo, imbecil. 

ELA



Ela é do tipo que ri alto. Que me fala que estou viajando e me pede para voltar. Ela simplesmente discorda. Ela convence. Ela fica braba se tropeça e fica muito braba se eu acho engraçado, e por mais que tenha graça para ela nunca tem graça.

Ela é do tipo que não fica bêbada. Nunca. Escolhe as bebidas com o paladar de um marinheiro molhado. Vira num gole e pede outra. Bate o copo no balcão, faz cara de mal sem falar palavrão. E ela sempre sabe a conta de cabeça. Com os 10%.

Ela é aquela pessoa irritante que sempre consegue um táxi, uma mesa, uma vaga. Quando ela telefona nunca dá ocupado. Ela entende um pouco de alemão, fala francês e sua mãe é sueca. Ela pede ingredientes para o Chef que eu nunca ouvi falar. E ele fica feliz de incluí-los no prato. Traz ele mesmo para a mesa e diz com sotaque "Boun apetit".

Eu a vi chegando de longe. Andando pela calçada. Quase derrubou o tio da Eletropaulo da escada. Nem encostou nele. Certeza que ele queria ter encostado nela, nem que caísse do alto. Metade do corpo no meio fio, metade na rua, com a língua para fora, inconsciente, com um fio de sangue escorrendo pelo canto da boca. Que delícia de deslocamento de ombro. "Crash with me babe".

Eu a escutei vindo de longe, nas buzinas dos carros anunciando sua chegada a um quarteirão e meio. Comemoração de futebol, buzinaço. Minha mulher-alvoroço.

Ela é do tipo que faz os caras buzinar na rua. Até mulher buzina. Um cachorro de rua a seguia pela calçada. Juro que achei que fosse dela. Assustou-se com os carros. Sarnento, fedido ganhou um afago na lata. E eu acho que vi um cachorro sorrir.


Ela é do tipo que faz baliza. Na subida. Xinga o carro da frente sem falar palavrão e diz que tem certeza que quem estacionou foi uma mulher. Reclama um pouco do espaço numa resmungada fofa. Faz comentário machista retocando o delineador enquanto manobra.

Esses dias a vi falando com um guarda que a ia multar. Saiu no meio da rua de seu carro bem estacionado. Atravessou andando com seus saltos Christian Louboutin de sola vermelha. Vi de longe o tiozinho guardando o bloquinho, pedindo desculpas, concordando. Parou o trânsito para ela sair. Parou o trânsito por ela; literalmente. Ela se recusa a parar em estacionamento, por que sempre tem vaga pra ela.

Leve



Menina de longe, quero estar sempre perto.

Tua vizinhança de sorte, sigo você nem sei ao certo.

Senhora das senhoras, minha melhor mancada.

Preciso perguntar as horas, passar em frente ao teu castelo

Decorar a placa do teu carro, pegar sua carta marcada.

Vou de leve até o fim.
E devagar eu não discordo e nem digo que sim.

Meu melhor palpite furado. Encontro as cegas, roupa de cetim.

Espero sentado, aguardo calado tua presença marcante,
Aguardo sentado; respirando. 

Nosso ponto de encontro.
Nome de guerra, seu nome no meu nome.

Companhia sagrada, minha mão pesada, teu sono leve.

Menina de leve,
me leve com você.

Já passa das duas da tarde.

Ele almoça tarde. Já passa das duas da tarde. Na verdade são quase três. O vejo saindo para almoçar. Atravessa a rua com inteligência. Não precisa; mas ele olha para os dois lados e segue. Apenas mais um dia frio.

Passa rapidamente pela artéria principal do Itaim. Não estava sol mas ele e usava seus óculos escuros: – Nunca sem eles – costumava dizer. De jaqueta preta, calça social e sapatos, na mão esquerda carrega uma revista Inglesa “Knowledge” com o DJ Goldie na capa. Pouca gente dever ler isso em São Paulo. A mão direita vai no bolso. Notavelmente se trata de um canhoto.

As pessoas andam com pressa pela rua. Ele desvia dos que não se importam em esbarrar com uma leveza elegante. Faz questão de o fazer. Espera sua vez de passar. Uma forma quase didática de evitar o impacto. Aos olhos de quem o vê parece meio bobo, como um personagem clichê de novela. Aos meus olhos – que o conheço de dentro pra fora – vejo seu comportamento como uma agressão irônica; que de tão bem dissimulada reflete sua culpa por satirizar aos menos avisados.

Gostava do clima de cidade gigante e levemente chique que encantava aquela região. Almoçava sozinho a maioria dos dias. Não se importava. Nunca se importou realmente. Conhecia quase todos os restaurantes ao redor. Seu favorito era um antigo e decadente karaokê japonês. Abafado pela fumaça dos cigarros, ideogramas em neon desbotados e pratos orientais que esquentavam as mesas de fórmica preta ao longo do salão.

O brilho do neon em tons de vermelho e rosa insistiam em falhar, piscando randomicamente. Seu zumbido irritante se misturava aos timbres cafonas da máquina de karaokê: a prata da casa.

A proprietária se chamava Mia. Perambulava pelo restaurante com uma graça etílica. Requebrando os quadris e as mãos na cintura, queixo sempre apontando para frente, como se desejasse enxergar por cima das coisas. Rapidamente se tornaram amigos. Uma química estranha e especial. Ela gostava de conversar, ele não tinha paciência com gente jovem e besta e ele também não falava de boca cheia. Companhia perfeita para o almoço.

Dona Mia morava em Okinawa – Terra do Karatê Kid. O Senhor Miyagi que não existiu de verdade. Segundo ela, era tudo invenção de Hollywood. Dona Mia era de longe mais interessante que todas as pessoas que trabalhavam com ele. Foi apresentado a ela e ao restaurante por um amigo. Naquele lugar ocidental entra. Mas àquela altura ele já era amigo da dona. Seu amigo é um tatuador famoso. Inspirou o clipe “Six Days” do DJ Shadow. Um clássico contemporâneo.

Por vezes se sentava junto a ele na mesa. Costumava insistir enquanto ele comia, que devia cantar ao menos uma música no almoço. “Música em japonês faz bem - dizia ela. Era só escolher alguma bem popular, imprimir a letra, assistir umas duzentas vezes no Youtube, ensaiar e cantar no almoço. Era mais fácil que parecia – insistia ela sorrindo com os dentes manchados de nicotina atrás dos lábios enrugados. A mulher tinha um bom espírito. Cantava em japonês.

Fumando uma longa cigarrilha de madrepérola branca e soltando a fumaça com o canto da boca, ela se curvava sobre as pernas cruzadas para se aproximar dele quando falava como se contasse um segredo. O via chegando de longe e já trazia o cardápio com sua bebida de sempre: chá verde.

Os sushimen atrás do longo balcão olhavam com certo deboche nos olhos. Sabiam que ela flertava com ele apesar do seus visíveis setenta anos. Ele não se importava. Todo escoteiro deve fazer pelo menos uma boa ação por dia. E a verdade é que dona Mia era interessantíssima. Se fosse mais nova iria para prego na certa.

Ele aprendeu a lidar com a senhora. Fingia pouco mais do que tolerava. O Sashimi incomparável fazia a alugação valer a pena. Na verdade a única coisa que valia era a comida mesmo já que a música não ajudava nem um pouco. Aqueles japoneses com suas testas brilhantes de suor pareciam carneiros indo para o abatedouro. Chorando de angústia na hora do almoço. Ele era a exceção por ali. Ocidental, faminto e feliz. Todos adoravam a música. Ele preferia a comida. Ela gostava da companhia.

Mudou-se para lá por conta e risco.



Desde que ela se mudou ele se sentia assim. A vida toda preferiu a solitude do que a companhia de qualquer imbecil que fosse obrigado a suportar. Quando mais jovem teve de aturar pessoas ao redor por diversos motivos. Mas desta vez era diferente. Ele não tinha motivo para ceder. Cedeu mesmo assim.
Não tinha cachorro nem gato. Assinava ao jornal. Cancelou a entrega do pão. Ele nunca comia mesmo. Recebia contas por baixo da porta. Não precisava: o débito era automático.
Passara da idade de ser avô sem nunca sequer ter se casado. Preferia dessa forma. A companhia da nova sobrinha pela casa o perturbava de maneira agradável. Fazia pouco barulho. Não usava o telefone. Tomava banhos rápidos e o assombrava de maneira familiar. Medo ele não tinha.
Uma espécie de curiosidade mórbida misturada com atração gravitacional. Ela era praticamente sua sobrinha. Ele mesmo não tinha nem irmão. Morrera no final dos anos oitenta num acidente de carro. Uma porrada na estrada. Era filha da irmã de uma namorada que também morreu.
O motivo de sua presença se diluiu pelos dias, ao longo das semanas. Era um pretexto de qualquer maneira. Seu elo de companhia ficou mais forte do que a vontade de expulsá-la de casa. Falavam pouco. Ficaram muito amigos.
Neste momento ela representava seu único e verdadeiro contato com qualquer jovem da época. A garota da loja de vinhos na marquise do prédio não contava. Ele nunca falava muito com ela.
A menina era bonita. Este sem dúvida não era o motivo que o fez deixá-la ficar em casa. Ela não chegava muito tarde quando voltava para casa. Ele não fazia perguntas. Não era seu responsável. Não sabia seu telefone decor.
Existia uma atração magnética entre os dois. Aquele teto pertencia única e exclusivamente a ele. Ela pediu um quarto e ele se calou para não ter que negar. Não gostava de ser babaca. Entrou então pela porta com uma enorme mala de plástico vermelha repleta de adesivos. Ele não teve tempo de dizer não. Temia que estivesse fugindo de alguém.
Nenhum dos dois tinha forças para carregar uma mala daquele tamanho. Uma espécie de container – só que cheio de roupas e tralhas. Dos corredores do prédio antigo direto para dentro de sua casa. De zero a cem em três segundos.
O utensílio tinha rodas de borracha. Rolaram gastas, rangendo pelo piso encardido de madeira. Emperrando com graça nas bordas dos tapetes que cobriam o chão do imóvel. Achou que fosse riscar o assoalho. Riscou.
Estacionou ao lado da porta de seu novo quatro. Já havia o escolhido antes de chegar ao prédio. A mala fazia um barulho estranho toda vez que era aberta. Um rangido plástico.
As vezes a noite percebia que a menina garimpava na mala. O silêncio era quebrado pelo barulho rouco e discreto de um vibrador. Em seguida a mala era aberta de novo e as luzes se apagavam. Ouvia o clic do interruptor. Ele percebia. Não se importava. Jamais a perguntaria sobre aquilo. Nunca chegou muito perto da mala. Uma dinâmica estranha de casal existia entre os dois. Respeito míope, surdez seletiva.
Seus cabelos pretos pendiam por trás dos ombros ocultando eternamente sua nuca e pescoço. Ele desconfiava de uma tatuagem. Ele mesmo tinha várias delas pelo corpo. Viveu os anos 90 e depois os 2000. No alto de sua idade pouco se importava em mostrá-las a moça. Achava que ela sentiria asco por ele. Estava velho. Este rera também o motivo do porquê que nunca a perguntou se de fato havia tinta sob sua pele naquele local.
Irritantemente lisos, seus cabelos cor de carvão o perturbavam. Limitados numa franja que terminava na testa, contrastavam sua pele jovem e pálida, quase mórbida. Linda. Branca como a verdade. Sobrancelhas simétricas esculpidas pela amiga esteticista e gay emolduravam seus olhos de cachorra braba.
Sentia medo de fazer o velho sofrer. Desejava em seu subconsciente ele a quisesse. Ele a queria; mas ele não sabia. Não queria a desejar. Não podia querer.
Ela sabia que era desejada por todos que a conheciam. As pessoas em volta se perguntavam silenciosamente por que morava com o velho. A empregada do apartamento ao lado achava que era golpe da menina. A vizinha rica, burra e evangélica tinha certeza que um dia, de alguma forma ela o mataria. O porteiro achava que era puta. A cumprimentava com seu diário sorriso obrigatório, disfarçando o sotaque nordestino. Se masturbava pensando nela.
A elegância do velho sobreviveu a todos aqueles anos. Ele jamais desconfiou mas a menina o fantasiava secretamente como amante. Em seus sonhos secretos sua postura pontuava o comportamento de seu amor mais ardente. O corpo pertencia a algum ator do cinema ou skatista amigo da rua. Mas a personalidade era dele. Ficaria feliz de saber disso. Mas certamente isso o traria problemas. E ele estava velho demais para isso.

Sacada



Então me lembrei de como você ria na sacada. Encostada na grade. Cotovelos para fora. Um dos pés descalço, apoiada nas barras de ferro. Me encarando felina com a cidade rugindo de mansinho nas suas costas. 

Bem tarde da noite e os carros  circulando, a 13 andares debaixo dos pés. O vento quente que te soprava os cabelos os fazendo entrar pelo canto da boca. Tua saia que voava de leve numa coreografia manca, junto as plantas da tua sacada anunciava uma chuva que estava por vir.

E uma cortina de calor invisível fazia as luzes de ferrugem cintilar no horizonte. Subindo ondas de radiação por cima dos ombros, como o calor que emana do asfalto em uma estrada num dia de verão.

Falando aos ouvidos, concentrados um no outro, pouca coisa nos tirava a atenção. Um moto ao longe que quebra o silêncio, o freio de um ônibus que apita, buzinas escondidas por trás das esquinas. Uma noite abafada por beijos açucarados e perfumes florais. Vinho e notas de madeira. Romance à vista; em três vezes sem juras.

Não sei se fizemos barulho. Nossas risadas eram altas, mas me concentrei só teu riso. Tua voz no meu ouvido, concordando, encarando. Cuidando para não chutar os copos no chão. Segurando as pontas da tua saia rebelde.

E daí eu fiquei lembrando de você apontando para o horizonte, ao me explicar o que havia por de trás daquelas montanhas, depois da enorme torre de TV.

Lembrei do gosto do vinho que tingiu de leve teus lábios e o gosto dos teus cabelos que entraram na minha boca, que você tirou rindo, me pedindo desculpas. Adorei o gosto...

Gosto te ver respirando ou atendendo ao interfone. Mudando os canais e chamando seu gato rebelde que nunca vem. Te adoro ver abrir as gavetas, segurando os cabelos e o decote junto ao colo para eu não veja teu peito. Procurando um livrinho, uma pilha, uma caneta. Para te falar a verdade vi bem pouquinho do peito nessa hora.

Lembro do cheiro da chuva que chegou para molhar sua sacada e nos fazer entrar na sala depressa. Fechando os vidros e esquecendo os copos na chuva. Me lembro das primeiras gotas que tentamos pegar com a boca, antes do dilúvio nos tocar para dentro e silenciar a cidade. Caindo no rosto, molhando as nossas testas e o chão. Anunciando com graça que precisávamos entrar. 

Adoro o gosto da chuva ácida. Mais do que do vinho. Mais do que da água com gás. Menos que teu gosto.

De manhã na sacada abri os vidros da sala. Cheios até boca estavam os copos que esquecemos no chão. A mistura de vinho e água se pronunciou num degrade quase impossível: água em cima, vinho embaixo, como se pouco misturassem.

Fico me lembrando que devia ter entendido que isso sim era um sinal: a água que não se misturou direito com o vinho. Numa noite especial que terminou para sempre junto com a chuva.


segunda-feira, 15 de abril de 2013

Joelhos

Eu adoraria dizer
que ao te ver
meus joelhos tremem
e dizer que me fazem sentir
que não aguentam meu peso
que não sustentam meu corpo.

Adoraria te dizer isso
Mas a verdade
é que ao te ver
a impressão que tenho
é que eles simplesmente não estão lá.
Não posso contar com eles.

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Acaso


O dia se anuncia cheiroso perto da grama. Meu bairro me trata bem. Com a luz do sol entrando pelos vãos das árvores, espero-te passar de novo pela rua. Aguardo sentado enquanto vejo carros em fila. Pego meu livro da mochila. Fones nos ouvidos. Blue de Chanel atrás das orelhas e a hortelã cuidadosa no hálito.

Em meu exercício mental imagino-te linda, sentada; com teu sorriso no canto do rosto. Suas roupas espertas refletindo o sol nos 15 minutos em que te tenho direito de dentro do ônibus. É mantra visual. Te visualizo com capricho (como se fizesse diferença) igual aprendi naquele filme esquisito “O Segredo”. Torcendo para se materializar. Ponho uma música inspiradora como se fosse meditar. E funciona.

Uma hora antes acordo com o grilo do meu iPhone cantando histérico. Não me importo mais de levantar. Administro os minutos como se fosse um árabe, sabendo que tenho uma margem pequena para não te deixar passar.

Eu ando com pressa mas não corro. Gosto de deixar ao acaso. Mas não muito. Não sinto que preciso correr. Numerologia besta de quem conta os minutos com os olhos e nem precisa olhar. Eu apenas sei. Conto com a sorte para atravessar a rua. O acaso é nosso amigo. Você sempre chega na hora e eu sempre estou lá.

Então eu acho que é um sinal. Me convenço. Faz mais de um mês que o brilho do sol no caminho não me ofusca mais e o verão nem acabou... Um olhar híbrido de interesse jocoso e familiaridade não me deixam mais ler meu livro.

Você me ofusca o olhar.Reluto, pondero, relevo. Então decido te conhecer. Resolvo me sentar ao teu lado e conversar uns minutos. Só para saber. Respiro fundo fingindo auto confiança selo a decisão: eu vou falar com você. Morro de vergonha. Mas vou.

O ônibus chega. Guardo o livro na mochila. Tento falar com você por alguns dias mas sempre tem cara diferente do teu lado. Será que eles tiveram a mesma ideia? Tomara que não...

Até o dia que acontece e para meu pânico completo você é ótima. Tem os óculos iguais aos meus e é bem mais bela de perto. Te visualizei errado... desculpa. Tiro os óculos para te ver melhor e você faz o mesmo. Olho no olho. Sorrimos com o cantos dos lábios. Riso nervoso. Aproveitando nossa meia dúzia de coisas boas em comum. Mais dois minutos elas viram 20.

E a viagem se passa em 3 minutos... Desço sorrindo. Coloco os óculos de novo.

Te escrevo: tenho várias perguntas. Faço apenas duas.
O silêncio para uma pergunta também é uma resposta.
Daí os dias passam e não te vejo mais. Você não passa.
Continuo no meu livro.

Webcam


Ela se despia devagar diante da Webcam. Ele abaixou o volume até o computador ficar mudo porque, na sala, seus alunos estavam fazendo prova.

A Trilogia Verbal do Amor

Ato 1:

O FUTURO DO PRESENTE

Hoje acordei cedo e não consegui mais dormir.
Veio um trovão, depois a chuva
e depois veio você, deixando-me sem adjetivos.
Vi tuas roupas na cadeira e perdi a linha de pensamento.
Esqueci do que sonhava. (sonhar pra quê?)
Imaginei ao meu lado, no teu lugar, teu lado da cama
deitada em teus cabelos louros no mesmo travesseiro que o meu.
Dormindo torta. Linda. Nossa nova cama de casal.

Acordei com aquela sensação de ausência, vazio singular,
Desejando-te um futuro lindo, te conhecendo pouco.
Um pouco mais a cada dia.
E essa dúvida secreta,
que te desenha mais do que perfeita
Nosso pretérito perfeito.
Tu és meu futuro do presente.

Vem morar na minha casa...
Suas roupas cabem no meu armário. Arrumo todas elas.
Quantos sapatos você tem? Eu já conheço uns 7 pares.
Quero todos eles ao lado dos meus. Pode colocar em cima.
Se não couber eu jogo fora aqueles meus que tu não gosta.

Hoje acordei cedo e não consegui dormir.
Vi tuas roupas na cadeira e esqueci o que ia falar.
Estava morrendo de sono e você tirou minha atenção.
Te imaginei aqui, respirando, abraçados num elo,
nosso nó cego, na caverna acolchoada de edredom.
Nossa cama de casal.
Travesseiro da Nasa, sonhando com estrelas.

Acordei pensando se estarias acordada ou não.
Se chegarias atrasada ao trabalho por fazer mais amor de manhã,
e na desculpa que daríamos...
Hoje seria a chuva, amanhã seria a greve,
e depois de amanhã é sábado. Não tem desculpa.

Nosso modo é imperativo.
Nossos baldes de café, nossos almoços no meio da tarde,
nosso entardecer particular; very important people only...

Entrelaçados em nosso nó-cego-pornográfico,
Acordando dispostos a começar tudo de novo no começo da noite

Oh pretérito perfeito.
Nossa novíssima gramática, modo subjetivo.
Falando ao pé do ouvido nossa lingua secreta,
Bebendo vinho tinto e escrevendo o futuro do presente.