sábado, 17 de novembro de 2012

SAVE THE DATE



Ela desceu as escadas pisando com força. Seus passos descalços fizeram eco no corredor. Reclamou com seu sotaque delícia alguma coisa sobre o Facebook. Quem se importa com o Facebook? Pegou as chaves do carro sobre a mesa e passou me fitando com seu olhar de cachorra braba. Faço força para não a encarar.

Encostado no sofá eu relaxo na minha zona de conforto. Tenho minha visão bloqueada de propósito. Sua cintura se posiciona entre eu e a TV. Ela quer que eu fale. Permaneço em silêncio.
Entµao sou baleado na cabeça. Um tiro apenas. Na testa. Meu corpo cai trêmulo no chão já sem vida. Meus companheiros gritam. É a segunda vez que esse Sniper afegão me acerta de dentro de uma caverna. Dessa vez a culpa é dela. Minha campanha como capitão de um pequeno pelotão em Kabul cai por terra. Sorte no amor, azar no jogo? Pode ser.


Eu pauso o video game e coloco o controle no sofá evitando um desastre ainda maior.

Passo a olhá-la nos olhos. Sentada ao meu lado ela calça os sapados da noite anterior. Eu adoro essas solas vermelhas. Seu vestido de noite contrasta com a luz do dia que penetra tímido pelas frestas da persiana. Ela não diz uma palavra. Bebo mais um pouco de café. Ofereço; ela não quer.
Ela tenta abrir a porta mas o trinco enrosca em suas chaves recém-copiadas. É preciso ter muito queijo para ganhar a cópia das chaves da minha casa. Mas ter as chaves não significa que vai entrar ou sair a hora que quiser. Eu decido. O trinco decide. Ela bufa; eu abro a porta: “ladies first”.


Me levanto sem pressa. Imagino alguma coisa esperta para dizer e evitar que ela atropele meu gato e derrube o portão com sua enorme picape prateada. Não consigo pensar em nada: tomei apenas uma xícara de café e meu cérebro ainda não começou a operar. Sinto preguiça disso tudo. Ela começa a manobrar. Já dentro do carro ela coloca os óculos escuros e sai cantando os pneus. Sinto vergonha pelos vizinhos; mas dura pouco. 


Sou obrigado a sair apenas de bermudas e sem cueca na rua, com um controle remoto na mão. É a única maneira de fazê-la parar de buzinar para sair da vila em que moro. Tem a chave de casa mas não tem o controle do portão. Uma boa metáfora. Penso nisso enquanto me espreguiço. Me curvo lateralmente como se estivesse na academia. O portão se abre devagar. Vejos seus olhos cheios de fúria me fritando pelo retrovisor. Ainda bem que ela não é o Cyclops.


Ela sai acelerando na rua. Raspa o fundo do carro no desnível do meio-fio numa ralada barulhenta. Acelera mais ainda e sai do meu campo de visão. Eu espero o portão se fechar.


Entro em casa feliz pela integridade física do gato que dorme no capô do carro da minha vizinha. Lindo, preguiçoso e tomando sol. Eles combinam.


Tranco a porta e passo a chave tetra. É só para garantir. 


Sento-me no mesmo lugar e revejo mentalmente o que fiz para aquilo acontecer. Cada passo, cada decisão, cada escolha. Arrependido me concentro. Respiro fundo e decido voltar atrás. Engolindo meu orgulho eu tomo a decisão correta: eu aceito retroceder.


Essa é sem dúvida a mais importante escolha da semana. Bebo mais um pouco de café. É hora de agir. Corajoso acato minha decisão: tiro o jogo congelado do "pause" e digo em voz alta para mim mesmo: "Agora eu mato aquele Sniper filho da puta!!" 

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