quinta-feira, 8 de junho de 2017

O duto de ar do meu prédio


Os apartamentos do meu prédio têm um duto de ar em frente à janela do banheiro. É uma espécie de túnel lateral à céu aberto que ventila algumas janelas de apartamentos. Foi a forma que os arquitetos encontraram de prover circulação de ar nos banheiros sem comprometer a privacidade de ninguém. As janelas estão dispostas de maneira que não ficam uma de frente para outra e o ar circula bem.
Mas este vão na lateral do prédio, além de prover a livre circulação de ar também promove a livre circulação de sons dos moradores; se é que você me entende...

Eu já escutei as coisas mais estranhas. Mesmo do segundo andar pude uma época compartilhar os desejos íntimos de um vizinho do nono andar (sim! NONO andar) que interagia verbalmente com filmes adultos de transexuais em sua webcam. Um outro vizinho meu dubla músicas da Beyonce, Abba, Elton John, e do Vitor e Léo. Tem um gato-felino que mia quando está com fome. Pela manhã e uma senhora que só fala pelo WhatsApp usando mensagens de voz. Sei tudo da vida dela. Dos remédios, da filha histérica e seu marido vagabundo.

Chego em casa todos os dias entre às 20:30 e às 21h. Nessa hora, a primeira coisa que faço é correr para o banheiro e me preparar para sair para treinar. Recentemente passei a escutar um vizinho meu que chama pela mãe após o banho. Isso me espanta pois, é uma voz de moleque grande e não de uma criancinha. Me parecia ter uns 9 ou dez anos de idade: maduro o suficiente para se enxugar sozinho.
De dentro do meu banheiro escuto o sem-noção gritar:
-- MÃE, ACABEI. VEM ME ENXUGAR, PORRAAA!!!
Essa frase me deixava paralisado. Primeiro: “Mãe, vem me enxugar” é uma coisa super perturbadora. Segundo: vem me enxugar, “porra”... Se fosse minha mãe já tinha entrado no banheiro me levantando pelas orelhas...

Outro dia, outra semana, outros pensamentos na cabeça.
Tiago no banheiro, sentado na privada tampada, amarrando os tênis de corrida...

-- CARALHO MÃE! TO COM FRIO AQUI. VEM ME ENXUGAR, PORRA!!!

Contenho a raiva. Penso numa mãe ocupada, cansada de trabalhar, fazendo jantar com um monte de problemas na cabeça e escutando esse bostinha demandando ser enxugado a tempo para não sentir frio... (E nem estava frio naquele dia). Fecho a janela, puxo a porta do banheiro e vou treinar com pena da vida alheia.

No caminho da portaria pergunto ao porteiro:
-- Tem alguma criança que more nos apartamentos que terminam em 5 ou 6?

Porteiro Tião me responde:

-- Não. Você sabe que neste prédio só mora velho. Se está escutando vozes de criança no duto de ar deve ser coisa da sua cabeça... Já basta o tarado do nono andar que você “descobriu”, né?

O Tião é foda.
O fato é que o duto de ar do meu apartamento é compartilhado pelos apartamentos que terminam mesmo em 5 e 6. O outro duto é para os apartamentos que terminam em 3 e 4 e outro para os apartamentos que terminam em 1 e 2. A história do cara do nono andar deu o que falar no prédio e fui eu quem desencadeou a crise.

Dois dias depois estou no banho. Preciso sair correndo para um jantar de trabalho. Deixo minhas roupas organizadas no banheiro para ser ainda mais rápido. Escuto pela janela:

-- MÃE VEM ME ENXUGAR, CARALHO!!!

Perco a linha. Estou de mau humor. Coloco a cara na janela com a boca perto do vão e grito para meu inimigo invisível:

-- Aí seu sacana, aprende a se secar sozinho, seu bosta. Moleque inútil do caralho!!
E do outro lado do duto de ar o moleque sem face replica com uma voz caricata, me arremedando:

-- Aprende a se secar sozinho, seu bosta. Moleque inútil do caralho!! – Fazendo uma voz de menininha.

A atitude do moleque me deixa louco. Ele não só escutou o que eu disse como repetiu palavra por palavra fazendo uma voz jocosa, caricata. O moleque folgado faz malcriação com a mãe e tira um sarro da minha cara. Fiquei puto.

No dia seguinte estou escovando os dentes para sair para treinar pois tenho mania de escovar os dentes e escuto:

-- MÃE, PUTA QUE PARIU, VEM ME SECAR AGORA!!!

Sem pestanejar sigo meu novo e satisfatório procedimento padrão de despressurização instantânea da raiva:
-- Aí moleque do caralho, se seca sozinho seu bosta. Seja alguém na tua vida seu inútil!!
E o moleque imitando voz de menina me replica:

-- Seja alguém na vida seu inútil!
Eu respondo:

-- Vai tomar no seu cu!

E ele me arremeda com a voz fina novamente:

-- Vai tomar no cu, nervosinho...

Penso em inúmeras formas de me vingar desse fedelho tentando desvendar qual seria seu apartamento. Fico com raiva e acho até um pouco de graça pela petulância do moleque: Grita com a mãe e satiriza os vizinhos repetindo suas frases com uma voz caricata.
Saio para treinar e me esqueço do assunto. Meu banho de retorno do treino acontece no mais confidencial silêncio. É tarde da noite e o moleque deve estar dormindo.

Três dias depois é um sábado de sol. Acordo cedo e me preparo para treinar. Saio pelo corredor de capacete, mochila e bicicleta. Mesmo morando no segundo andar costumo descer de elevador quando estou de bicicleta. Faço isso para não marcar as paredes da escada com os pneus pretos.

Chamo elevador e acompanho sua chegada pelo visor. Noto que desta vez ele vem de cima e não dos andares abaixo dos meus como de costume. Como isso raramente acontece eu me preparo mentalmente para manobrar a bicicleta com outros moradores dentro do elevador ou mesmo ter de esperar por outra viagem, dependendo de quantas pessoas estiverem dentro dele.

 A porta do elevador se abre. Fico imóvel. Paralisado. O interior do velho elevador revela uma senhora negra, levemente obesa, com roupas coloridas de referências africanas, ela é forte e traz uma dignidade inabalável estampada no rosto. Segura as manoplas de uma cadeira de rodas de criança. Nela senta-se um garotinho de uns dez anos de idade. Negro, bochechudo, sorridente e... paraplégico.

Ele olha para mim e para a minha bicicleta com a admiração de alguém que talvez não possa fazer o que faço. Ele não sabe quem eu sou. Mede cada centímetro da minha bike sorrindo. Eu me pergunto e instantaneamente confirmo mentalmente que este é o menino que grita no chuveiro. Me questiono se minha bicicleta irá caber no elevador com eles dois lá dentro. Tenho medo de ser identificado. Sinto o rosto queimar numa vergonha vermelha na cara.

Antes que eu me mova ele fala com sua voz muito mais do que familiar:

-- ENTRA! SUA BICICLETA CABE AQUI NO CANTO!

Eu me encaixo sem graça no espaço reservado e agradeço com a cabeça tentando ao máximo não dar uma palavra. Não consigo, preciso dizer alguma coisa antes que a situação fique constrangedora. Decido mudar a minha voz para que ele não me reconheça:
Imito o Pernalonga para ele não perceber quem sou: 

-- Obrigado Velhinho! Hehehe...

Desço os dois andares mas parece levei dias dentro do elevador. Penso no que fiz pedalando no caminho. Chego no treino cansado.

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