Voltávamos por uma estradinha que liga a Ilha Comprida à margem da balsa que chega em Cananéia. São quatro quilômetros de estrada de areia fofa e cascalho no chão. Eu e meus dois amigos biólogos e suas respectivas namoradas retornávamos de uma tarde de coleta de material marinho para uma iniciativa voluntária de auxílio à pesquisa do instituto de biologia marinha local. Alguma coisa relacionada à reprodução de ostras e crustáceos. Tecnicamente, voltávamos da praia com vidros de azeitonas em conserva cheios de água do mar e porra de ostras, literalmente.
Esse lado da praia na ilha tem
uma linha de ônibus que opera diariamente, de hora em hora. O trajeto da ponta
da Ilha Comprida até a praia de “Pedrinhas” leva cerca de uma hora para fazer
um ônibus enferrujado percorrer 50 Km de praia seguidos de uns 5 km de uma
estradinha no meio do mato levando os caiçaras que moram na região e turistas
que não se importam em perder uma porcentagem significativa de sua percepção
auditiva em um ônibus que chacoalha como uma máquina de minerar ouro e faz o
barulho de um moedor de carne industrial. Faz parte do charme do passeio.
Mas neste dia decidimos fazer os
4 km finais que separam as pontas das praias à pé. Era um fim de tarde de
outubro, dia de semana longe de feriados e não havia absolutamente ninguém
naquela porção da praia. A natureza já se habituara novamente ao silencio da
estrada, devolvendo o barulho hipnótico da mata com seus pássaros, besouros, e
mosquitos felizes zumbindo em nossos ouvidos num pôr do sol de calor num céu
ridiculamente alaranjado e dourado. Uma experiência lisérgica sem LSD nenhum.
Nosso amigo Patrick andava ao
lado de seu parceiro de mergulho cerca de cem metros a nossa frente. Carregava sua
prancha de surf em baixo do braço e tinha a parte superior de seu traje de
mergulho aberta, arregaçada para trás, na altura da cintura. Esse é um costume
entre os biólogos da região: levar a prancha sempre que há expedição. Eu e
minhas duas amigas voltávamos mais para trás na estrada, carregando as mochilas
com as amostras de água, finalizando uma ponta de um baseado enquanto ríamos e
falávamos de coisas randômicas engolfados pela natureza do trajeto.
Foi então que os meninos na nossa
frente sinalizaram que alguma coisa estranha acontecia. A cem metros, bem na
frente deles na estrada, havia o que parecia ser um troco atravessado na pista.
Perpendicular à estrada repousava de maneira indecifrável um lagarto da região
de mais ou menos dois metros de cumprimento. Teiú Branco é o nome que os
residentes locais dão para o bicho. O Tupinambis
teguixin L. é nativo das matas e praias brasileiras, ocorre no Brasil e na
Argentina e é conhecido por devorar galinhas inteiras, mamíferos pequenos, ovos
de qualquer bicho, subir em árvores e pedras e é famoso por sua velocidade e
agressividade.
Igual a nós, Patrick e seu amigo
também finalizavam uma ponta de um outro baseado enquanto se aproximavam do
imenso réptil. Para nós ficava no ar a pergunta se o bicho estaria ou não vivo
por conta de estar atravessado na estrada, totalmente imóvel e com olhos
aparentemente fechados. Na estrada, certamente nos últimos 60 minutos, nenhum
veículo havia passado. Nossa dúvida sobre a vitalidade do bicho repercutia em
nossa conversa, enquanto – de longe – eu e as meninas observávamos na dúvida o
estado do bicho.
Nosso amigo chegou bem perto com
um ar debochado. Biólogo experiente, mergulhador e sushi man. Olhou para trás em
nossa direção e gritou em plenos pulmões:
-- Ele tá morto! Esse aqui tá morto...
Continuamos nos aproximando devagar com a cautela de quem tem medo de
qualquer coisa que seja mais comprida que nós mesmos...
-- Ele tá morto! E demonstrou sua teoria cutucando as costelas do
réptil repetidamente com a ponta de sua prancha de surfe...
O bicho continuava absolutamente
imóvel. Congelado. Olhos fechados. Seguimos nos aproximando e quando chegamos a
cinquenta metros da cena, paramos.
-- Eu vou virar ele!! – disse Patrick animado.
Patrick então calçou o bicho por
baixo, forçando a ponta da sua prancha entre a areia fofa da estada e a barriga
do animal. Era pesado. Muito pesado. Fez força para virar o lagarto pela altura
do pescoço para conferir se ele tinha algum ferimento do dorso... mas ele não
tinha nada.
E foi aí que o lagarto se mexeu.
O bicho abriu a boca e os olhos
furiosos e “gecou”. Gecar é o nome de um ruído apavorante que os lagartos
soltam: um silvo, uma espécie de sopro alto, gutural e agudo que se parece o
barulho que cobras grandes fazem quando estão acuadas. Como se fossem uma
válvula de pressão liberando o vapor. Um barulho assustador que silenciou toda
a mata ao redor.
Patrick deu um pulo para trás,
assustando ainda mais o lagarto que nessa hora que percebeu o medo de seu algoz
decidiu avançar. Patrick saiu correndo. O lagarto o começou a seguir dando
botes em nosso amigo tropeçante como se fosse uma cobra, tentando lhe morder os
pés e mãos mas ele correu apavorado pela areia da estrada, levantando poeira ao
perder os chinelos, correndo igual a um tarado.
Nós, um pouco atrás, em estado de
choque e falta de ar de tanto rir assistíamos a cena: o lagarto começou a
correr atrás do nosso colega numa velocidade tão inacreditável que chegara ao
ponto de se equilibrar nas duas patas de trás e no rabo, ficando literalmente
em pé, com a boca quase na altura da cabeça do nosso amigo, que desesperado corria
em direção à balsa.
O susto para nós durou pouco mas o
para Patrick levou uma eternidade. Após alguns metros de perseguição o lagarto
desencanou do nosso amigo errante e fugiu novamente para a mata, pulando para o
acostamento. Nós quatro, tentamos durante os dez minutos seguintes recuperarmos
e a dignidade e levantarmos do chão depois de rirmos convulsivamente do nosso
amigo cambaleante, branco, apavorado e arrependido.
Nosso amigo Patrick ganhou alguns
hematomas por conta das rabadas que o lagarto deu nele durante a perseguição. Eu
honestamente nem vi mas dizem que é uma defesa do bicho.
Nós, quase morremos de rir por
ver a cena toda, ali, na nossa frente. E eu levei alguns minutos de fato para recuperar
o folego, e nossa amiga Cintia – namorada dele - fez xixi nas calças de tanto rir. Literalmente.
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