Os apartamentos do meu prédio têm
um duto de ar em frente à janela do banheiro. É uma espécie de túnel lateral à
céu aberto que ventila algumas janelas de apartamentos. Foi a forma que os
arquitetos encontraram de prover circulação de ar nos banheiros sem comprometer
a privacidade de ninguém. As janelas estão dispostas de maneira que não ficam
uma de frente para outra e o ar circula bem.
Mas este vão na lateral do
prédio, além de prover a livre circulação de ar também promove a livre
circulação de sons dos moradores; se é que você me entende...
Eu já escutei as coisas mais
estranhas. Mesmo do segundo andar pude uma época compartilhar os desejos
íntimos de um vizinho do nono andar (sim! NONO andar) que interagia verbalmente
com filmes adultos de transexuais em sua webcam. Um outro vizinho meu dubla
músicas da Beyonce, Abba, Elton John, e do Vitor e Léo. Tem um gato-felino que
mia quando está com fome. Pela manhã e uma senhora que só fala pelo WhatsApp
usando mensagens de voz. Sei tudo da vida dela. Dos remédios, da filha
histérica e seu marido vagabundo.
Chego em casa todos os dias entre
às 20:30 e às 21h. Nessa hora, a primeira coisa que faço é correr para o
banheiro e me preparar para sair para treinar. Recentemente passei a escutar um
vizinho meu que chama pela mãe após o banho. Isso me espanta pois, é uma voz
de moleque grande e não de uma criancinha. Me parecia ter uns 9 ou dez anos de
idade: maduro o suficiente para se enxugar sozinho.
De dentro do meu banheiro escuto
o sem-noção gritar:
-- MÃE, ACABEI. VEM ME ENXUGAR,
PORRAAA!!!
Essa frase me deixava paralisado.
Primeiro: “Mãe, vem me enxugar” é uma coisa super perturbadora. Segundo: vem me
enxugar, “porra”... Se fosse minha mãe já tinha entrado no banheiro me levantando
pelas orelhas...
Outro dia, outra semana, outros
pensamentos na cabeça.
Tiago no banheiro, sentado na
privada tampada, amarrando os tênis de corrida...
-- CARALHO MÃE! TO COM FRIO AQUI.
VEM ME ENXUGAR, PORRA!!!
Contenho a raiva. Penso numa mãe
ocupada, cansada de trabalhar, fazendo jantar com um monte de problemas na
cabeça e escutando esse bostinha demandando ser enxugado a tempo para não
sentir frio... (E nem estava frio naquele dia). Fecho a janela, puxo a porta do
banheiro e vou treinar com pena da vida alheia.
No caminho da portaria pergunto ao porteiro:
-- Tem alguma criança que more
nos apartamentos que terminam em 5 ou 6?
Porteiro Tião me responde:
-- Não. Você sabe que neste
prédio só mora velho. Se está escutando vozes de criança no duto de ar deve ser
coisa da sua cabeça... Já basta o tarado do nono andar que você “descobriu”,
né?
O Tião é foda.
O fato é que o duto de ar do meu
apartamento é compartilhado pelos apartamentos que terminam mesmo em 5 e 6. O
outro duto é para os apartamentos que terminam em 3 e 4 e outro para os
apartamentos que terminam em 1 e 2. A história do cara do nono andar deu o que
falar no prédio e fui eu quem desencadeou a crise.
Dois dias depois estou no banho.
Preciso sair correndo para um jantar de trabalho. Deixo minhas roupas
organizadas no banheiro para ser ainda mais rápido. Escuto pela janela:
-- MÃE VEM ME ENXUGAR, CARALHO!!!
Perco a linha. Estou de mau
humor. Coloco a cara na janela com a boca perto do vão e grito para meu inimigo
invisível:
-- Aí seu sacana, aprende a se
secar sozinho, seu bosta. Moleque inútil do caralho!!
E do outro lado do duto de ar o
moleque sem face replica com uma voz caricata, me arremedando:
-- Aprende a se secar sozinho,
seu bosta. Moleque inútil do caralho!! – Fazendo uma voz de menininha.
A atitude do moleque me deixa
louco. Ele não só escutou o que eu disse como repetiu palavra por palavra
fazendo uma voz jocosa, caricata. O moleque folgado faz malcriação com a mãe e
tira um sarro da minha cara. Fiquei puto.
No dia seguinte estou escovando
os dentes para sair para treinar pois tenho mania de escovar os dentes e
escuto:
-- MÃE, PUTA QUE PARIU, VEM ME
SECAR AGORA!!!
Sem pestanejar sigo meu novo e
satisfatório procedimento padrão de despressurização instantânea da raiva:
-- Aí moleque do caralho, se seca
sozinho seu bosta. Seja alguém na tua vida seu inútil!!
E o moleque imitando voz de
menina me replica:
-- Seja alguém na vida seu
inútil!
Eu respondo:
-- Vai tomar no seu cu!
E ele me arremeda com a voz fina novamente:
-- Vai tomar no cu, nervosinho...
Penso em inúmeras formas de me
vingar desse fedelho tentando desvendar qual seria seu apartamento. Fico com
raiva e acho até um pouco de graça pela petulância do moleque: Grita com a mãe
e satiriza os vizinhos repetindo suas frases com uma voz caricata.
Saio para treinar e me esqueço do
assunto. Meu banho de retorno do treino acontece no mais confidencial silêncio.
É tarde da noite e o moleque deve estar dormindo.
Três dias depois é um sábado de
sol. Acordo cedo e me preparo para treinar. Saio pelo corredor de capacete,
mochila e bicicleta. Mesmo morando no segundo andar costumo descer de elevador
quando estou de bicicleta. Faço isso para não marcar as paredes da escada com
os pneus pretos.
Chamo elevador e acompanho sua
chegada pelo visor. Noto que desta vez ele vem de cima e não dos andares abaixo
dos meus como de costume. Como isso raramente acontece eu me preparo
mentalmente para manobrar a bicicleta com outros moradores dentro do elevador
ou mesmo ter de esperar por outra viagem, dependendo de quantas pessoas
estiverem dentro dele.
A porta do elevador se abre. Fico imóvel.
Paralisado. O interior do velho elevador revela uma senhora negra, levemente
obesa, com roupas coloridas de referências africanas, ela é forte e traz uma
dignidade inabalável estampada no rosto. Segura as manoplas de uma cadeira de
rodas de criança. Nela senta-se um garotinho de uns dez anos de idade. Negro,
bochechudo, sorridente e... paraplégico.
Ele olha para mim e para a minha
bicicleta com a admiração de alguém que talvez não possa fazer o que faço. Ele
não sabe quem eu sou. Mede cada centímetro da minha bike sorrindo. Eu me
pergunto e instantaneamente confirmo mentalmente que este é o menino que grita
no chuveiro. Me questiono se minha bicicleta irá caber no elevador com eles
dois lá dentro. Tenho medo de ser identificado. Sinto o rosto queimar numa
vergonha vermelha na cara.
Antes que eu me mova ele fala com
sua voz muito mais do que familiar:
-- ENTRA! SUA BICICLETA CABE AQUI
NO CANTO!
Eu me encaixo sem graça no espaço
reservado e agradeço com a cabeça tentando ao máximo não dar uma palavra. Não
consigo, preciso dizer alguma coisa antes que a situação fique constrangedora. Decido
mudar a minha voz para que ele não me reconheça:
Imito o Pernalonga para ele não
perceber quem sou:
-- Obrigado Velhinho! Hehehe...
Desço os dois andares mas parece
levei dias dentro do elevador. Penso no que fiz pedalando no caminho. Chego no treino cansado.