quinta-feira, 18 de abril de 2013

Mudou-se para lá por conta e risco.



Desde que ela se mudou ele se sentia assim. A vida toda preferiu a solitude do que a companhia de qualquer imbecil que fosse obrigado a suportar. Quando mais jovem teve de aturar pessoas ao redor por diversos motivos. Mas desta vez era diferente. Ele não tinha motivo para ceder. Cedeu mesmo assim.
Não tinha cachorro nem gato. Assinava ao jornal. Cancelou a entrega do pão. Ele nunca comia mesmo. Recebia contas por baixo da porta. Não precisava: o débito era automático.
Passara da idade de ser avô sem nunca sequer ter se casado. Preferia dessa forma. A companhia da nova sobrinha pela casa o perturbava de maneira agradável. Fazia pouco barulho. Não usava o telefone. Tomava banhos rápidos e o assombrava de maneira familiar. Medo ele não tinha.
Uma espécie de curiosidade mórbida misturada com atração gravitacional. Ela era praticamente sua sobrinha. Ele mesmo não tinha nem irmão. Morrera no final dos anos oitenta num acidente de carro. Uma porrada na estrada. Era filha da irmã de uma namorada que também morreu.
O motivo de sua presença se diluiu pelos dias, ao longo das semanas. Era um pretexto de qualquer maneira. Seu elo de companhia ficou mais forte do que a vontade de expulsá-la de casa. Falavam pouco. Ficaram muito amigos.
Neste momento ela representava seu único e verdadeiro contato com qualquer jovem da época. A garota da loja de vinhos na marquise do prédio não contava. Ele nunca falava muito com ela.
A menina era bonita. Este sem dúvida não era o motivo que o fez deixá-la ficar em casa. Ela não chegava muito tarde quando voltava para casa. Ele não fazia perguntas. Não era seu responsável. Não sabia seu telefone decor.
Existia uma atração magnética entre os dois. Aquele teto pertencia única e exclusivamente a ele. Ela pediu um quarto e ele se calou para não ter que negar. Não gostava de ser babaca. Entrou então pela porta com uma enorme mala de plástico vermelha repleta de adesivos. Ele não teve tempo de dizer não. Temia que estivesse fugindo de alguém.
Nenhum dos dois tinha forças para carregar uma mala daquele tamanho. Uma espécie de container – só que cheio de roupas e tralhas. Dos corredores do prédio antigo direto para dentro de sua casa. De zero a cem em três segundos.
O utensílio tinha rodas de borracha. Rolaram gastas, rangendo pelo piso encardido de madeira. Emperrando com graça nas bordas dos tapetes que cobriam o chão do imóvel. Achou que fosse riscar o assoalho. Riscou.
Estacionou ao lado da porta de seu novo quatro. Já havia o escolhido antes de chegar ao prédio. A mala fazia um barulho estranho toda vez que era aberta. Um rangido plástico.
As vezes a noite percebia que a menina garimpava na mala. O silêncio era quebrado pelo barulho rouco e discreto de um vibrador. Em seguida a mala era aberta de novo e as luzes se apagavam. Ouvia o clic do interruptor. Ele percebia. Não se importava. Jamais a perguntaria sobre aquilo. Nunca chegou muito perto da mala. Uma dinâmica estranha de casal existia entre os dois. Respeito míope, surdez seletiva.
Seus cabelos pretos pendiam por trás dos ombros ocultando eternamente sua nuca e pescoço. Ele desconfiava de uma tatuagem. Ele mesmo tinha várias delas pelo corpo. Viveu os anos 90 e depois os 2000. No alto de sua idade pouco se importava em mostrá-las a moça. Achava que ela sentiria asco por ele. Estava velho. Este rera também o motivo do porquê que nunca a perguntou se de fato havia tinta sob sua pele naquele local.
Irritantemente lisos, seus cabelos cor de carvão o perturbavam. Limitados numa franja que terminava na testa, contrastavam sua pele jovem e pálida, quase mórbida. Linda. Branca como a verdade. Sobrancelhas simétricas esculpidas pela amiga esteticista e gay emolduravam seus olhos de cachorra braba.
Sentia medo de fazer o velho sofrer. Desejava em seu subconsciente ele a quisesse. Ele a queria; mas ele não sabia. Não queria a desejar. Não podia querer.
Ela sabia que era desejada por todos que a conheciam. As pessoas em volta se perguntavam silenciosamente por que morava com o velho. A empregada do apartamento ao lado achava que era golpe da menina. A vizinha rica, burra e evangélica tinha certeza que um dia, de alguma forma ela o mataria. O porteiro achava que era puta. A cumprimentava com seu diário sorriso obrigatório, disfarçando o sotaque nordestino. Se masturbava pensando nela.
A elegância do velho sobreviveu a todos aqueles anos. Ele jamais desconfiou mas a menina o fantasiava secretamente como amante. Em seus sonhos secretos sua postura pontuava o comportamento de seu amor mais ardente. O corpo pertencia a algum ator do cinema ou skatista amigo da rua. Mas a personalidade era dele. Ficaria feliz de saber disso. Mas certamente isso o traria problemas. E ele estava velho demais para isso.

Um comentário:

  1. em primeiro,
    GOSTO muuuito dessa fotografia.
    em segundo,
    lerei o texto.
    comecei a ler,
    tô no primeiro parágrafo ainda,
    BOM sinal, fiquei curiosa...
    o autor desperta (!)
    é como cheiro bom na cozinha,
    a gente vai ver o que tem na panela...

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