quinta-feira, 18 de abril de 2013

Já passa das duas da tarde.

Ele almoça tarde. Já passa das duas da tarde. Na verdade são quase três. O vejo saindo para almoçar. Atravessa a rua com inteligência. Não precisa; mas ele olha para os dois lados e segue. Apenas mais um dia frio.

Passa rapidamente pela artéria principal do Itaim. Não estava sol mas ele e usava seus óculos escuros: – Nunca sem eles – costumava dizer. De jaqueta preta, calça social e sapatos, na mão esquerda carrega uma revista Inglesa “Knowledge” com o DJ Goldie na capa. Pouca gente dever ler isso em São Paulo. A mão direita vai no bolso. Notavelmente se trata de um canhoto.

As pessoas andam com pressa pela rua. Ele desvia dos que não se importam em esbarrar com uma leveza elegante. Faz questão de o fazer. Espera sua vez de passar. Uma forma quase didática de evitar o impacto. Aos olhos de quem o vê parece meio bobo, como um personagem clichê de novela. Aos meus olhos – que o conheço de dentro pra fora – vejo seu comportamento como uma agressão irônica; que de tão bem dissimulada reflete sua culpa por satirizar aos menos avisados.

Gostava do clima de cidade gigante e levemente chique que encantava aquela região. Almoçava sozinho a maioria dos dias. Não se importava. Nunca se importou realmente. Conhecia quase todos os restaurantes ao redor. Seu favorito era um antigo e decadente karaokê japonês. Abafado pela fumaça dos cigarros, ideogramas em neon desbotados e pratos orientais que esquentavam as mesas de fórmica preta ao longo do salão.

O brilho do neon em tons de vermelho e rosa insistiam em falhar, piscando randomicamente. Seu zumbido irritante se misturava aos timbres cafonas da máquina de karaokê: a prata da casa.

A proprietária se chamava Mia. Perambulava pelo restaurante com uma graça etílica. Requebrando os quadris e as mãos na cintura, queixo sempre apontando para frente, como se desejasse enxergar por cima das coisas. Rapidamente se tornaram amigos. Uma química estranha e especial. Ela gostava de conversar, ele não tinha paciência com gente jovem e besta e ele também não falava de boca cheia. Companhia perfeita para o almoço.

Dona Mia morava em Okinawa – Terra do Karatê Kid. O Senhor Miyagi que não existiu de verdade. Segundo ela, era tudo invenção de Hollywood. Dona Mia era de longe mais interessante que todas as pessoas que trabalhavam com ele. Foi apresentado a ela e ao restaurante por um amigo. Naquele lugar ocidental entra. Mas àquela altura ele já era amigo da dona. Seu amigo é um tatuador famoso. Inspirou o clipe “Six Days” do DJ Shadow. Um clássico contemporâneo.

Por vezes se sentava junto a ele na mesa. Costumava insistir enquanto ele comia, que devia cantar ao menos uma música no almoço. “Música em japonês faz bem - dizia ela. Era só escolher alguma bem popular, imprimir a letra, assistir umas duzentas vezes no Youtube, ensaiar e cantar no almoço. Era mais fácil que parecia – insistia ela sorrindo com os dentes manchados de nicotina atrás dos lábios enrugados. A mulher tinha um bom espírito. Cantava em japonês.

Fumando uma longa cigarrilha de madrepérola branca e soltando a fumaça com o canto da boca, ela se curvava sobre as pernas cruzadas para se aproximar dele quando falava como se contasse um segredo. O via chegando de longe e já trazia o cardápio com sua bebida de sempre: chá verde.

Os sushimen atrás do longo balcão olhavam com certo deboche nos olhos. Sabiam que ela flertava com ele apesar do seus visíveis setenta anos. Ele não se importava. Todo escoteiro deve fazer pelo menos uma boa ação por dia. E a verdade é que dona Mia era interessantíssima. Se fosse mais nova iria para prego na certa.

Ele aprendeu a lidar com a senhora. Fingia pouco mais do que tolerava. O Sashimi incomparável fazia a alugação valer a pena. Na verdade a única coisa que valia era a comida mesmo já que a música não ajudava nem um pouco. Aqueles japoneses com suas testas brilhantes de suor pareciam carneiros indo para o abatedouro. Chorando de angústia na hora do almoço. Ele era a exceção por ali. Ocidental, faminto e feliz. Todos adoravam a música. Ele preferia a comida. Ela gostava da companhia.

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